segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Verão

(sobre um tema de Dylan)

sua voz amputada de meus ouvidos. não mais gosto de ti quando calas: está de fato ausente. o sol rasga o céu tirando dele a noite. estou no claro e me sinto cego, sabe que não sei como me comportar na luz. aliás, estou no claro e com sono e sem pálpebras.

escondo-me em escombros em construção e destruo minha alma. ela está quente e derretendo. me acostumei (ou acostumou-me?) com a escuridão e o frio. quero entrar num freezer, mas estou claustrofotofóbico. a multidão de raios solares me deixou assim. estou sem jeito de ser. sem saída. tento o de dentro, mas não encontro. não o vejo na luz.

a luz me faz tua voz ser diferente. não a reconheço, mesmo se você me falasse diretamente ao ouvido. claro assim, sou surdo de ti. procuro agonizante tua voz numa multidão polifônica. e mesmo que a sua esteja, na luz ela tem outras propriedades; outros vocabulários, outras entonações, gírias, discursos... não te reconheço na luz.

penso-me agora incompatível a teu sangue, você que se sabe na claridade e eu, no escuro. (será que me reconheces na luz?)

algo está acontecendo neste lugar iluminado. ouço moedas caindo num recipiente metálico aos meus pés. uma multidão de vozes me cercam. talvez você esteja por perto, mas não sei se pode me salvar.

você me reconhece na luz?

algo está acontecendo. mas você não sabe do que se trata. ou sabe?

(o verão me engoliu o que eu poderia ter sido)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Buracos

I

há um buraco no calendário do tamanho da falta que sinto em mim. e não sei quem o que ou coisa alguma. o que me acontece é que quando olho para o calendário, vejo nele um buraco maior que a parede. e o buraco me espelha: está em mim. ontem de manhã, quando caminhava para distrair minha fome, uma criança me olhou nos olhos, bem no fundo dele e falou "mãe, você viu que homem esburacado?!""quieto menino, e fique longe dos poços." o buraco é tão grande que já está dando o que falar na rua! já não consigo esconder minha fome.

II

sabe, às vezes encontro alguns amigos que não os vejo há tempos e não consigo sentir mais o abraço deles. eles me abraçam e quando viro as costa eles estão ali, atrás de mim. olham-me constrangidos, desviam seus olhos dos meus, dizem de forma quase ilegível apenas "sinto muito", e do mesmo jeito que me atravessaram vão embora. as pessoas não sabem lidar muito bem com seus buracos...

III

conheci, dia desses, um homem curioso. profissão: poceiro. sim, ele faz poços. de início tive medo, não sabia que houvesse pessoas fazendo buracos pelo mundo afora. na ocasião em que o conheci, ele estava no fundo do poço. disse-me que se pudesse passaria horas ali. anos mais tarde, passo por este poço e penso: o homem vive agora como sempre quis, na sua hora eterna.

IV

"tatu não vê a lua" - e se visse com certeza não seria tatu: ele vive em buracos. tem fobia por qualquer claridade. dói-me a vista à exposição solar.

V

se eu resolvesse gritar, quem ouviria? li num livro de física que o som não se propaga no vácuo. e como gritar com um buraco desses pegado à vida? a gente se acostuma fácil às coisas. não me incomodo com o silêncio.

(lembro-me de ter lido em algum lugar, mas não lembro onde "e esse silêncio que não é mudez"...)

... desconfio que sinto saudades não sei de quê...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Navios

estava no cais. sempre estava. gostava de ver navios. há tempos havia tomado gosto por eles. não sabia quando começou. talvez muito antes de sua existência.

seus olhos grudavam no casco do navio, como as ferrugens em suas placas de metal. a própria ferrugem o fascinava. não se sabia a cor de seus olhos: se eram castanhos ou se foram tomados pelo encanto que tinham pela ferrugem.

a imensidão do navio. sua grandeza majestosa. o sol no poente, visto de trás do navio era pouco, perto de sua grandeza. o menino crescia junto.

crescia e se rendia à beleza do transatlântico.

todo os dias o menino ia de encontro ao navio, como o fígado Prometéico que se regenerava à águia faminta - como um amante obediente à sua amada.

mas o navio não se regeneraria após a partida. ao singrar à curva do horizonte, nunca mais voltaria àqueles olhos castanhos.

os olhos, ferrugem, sabiam muito bem: eram sol que se apresentava independente das nuvens que pudessem lhe cobrir a cidade, razão de seu brilho.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Amnésia

quis esquecer-me do mundo para que ele me esquecesse. e esquecia-me a cada dia do que imaginava o que poderia ser eu mundo outro. desconhecia-me conhecendo. e com o olhar primeiro sobre as coisas, ia me despindo do equívoco de "eu sei". sabia a cada dia que se podia saber mais e não sabendo não podia me bastar à vastidão do tudo-nada. queria transcender a margem de qualquer coisa que se fizesse existência; desinventar qualquer verdade que enquadrasse a imaginação que fosse; desfazer qualquer limite que me limitasse ir além. além quê? ainda não cheguei a quê.

sou-te e me é novo a cada dia. somo-nos segredos a serem celebrados diariamente.

(e se acaso me encontrasse e a cada dia lhe fosse lançado olhares estranhos como algo que te tivesse descoberto pela primeira vez, algo nunca testemunhado por aqueles olhos ávidos de ti? teria coragem de se expor a quem, a cada dia, te adentrava como uma luz que revela a escuridão?)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pequenas Epifanias

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida’:


Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 22/4/1986 )

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sobre Flores e Trens Cargueiros

um trem cargueiro em mim se torcendo dentro. circunvoluções em volta do mesmo espaço mínimo e íntimo. peito de um corpo.

uma flor fora: cuidado que não me dou (as flores sobreviverão antes que eu despetale?). amanhã, talvez, a flor morra.

antes, tenta vencer, indo de encontro ao céu ao sol e só. com sua pouca e parca força. porcamente acinzentada. amarela. pálida. (recolhida de algum jardim drummondiano).

o trem dentro quer a flor fora: convulsão estática.

o corpo pára numa tensão de rocha labiríntica prestes à erupção. a flor à espreita fora provoca o trem dentro. dentro, o trem - no espaço intransponível - quer o cio da flor.

a flor em sua vaidade opaca quer o único ser que a vê. um ser que ao mínimo contato a estraçalhará. ela quer a violência dele.

a caminho de sua definhação ela se excita, como um sexo diante outro, desejante. sua pulsão máxima. quase brilho. ouropel.

o trem se debate no peito mínimo que já há muito não lhe cabe. a flor se desepera em êxtase. o corpo não vê flor nem trem. não tem memória.

a flor despetala-se num vaso poeirento num quarto qualquer. o trem turbulento, faz formigações no corpo.

e em mim, um mal estar no corpo - pele descascando - pensando no que poderei fazer amanhã.

(que talvez não venha)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Partida

a velha queria ir ao aeroporto ver aviões partir. sonhou com um enorme, grande, na noite anterior àquela que descobriu ter um sonho. não sabia como eram os aeroportos. e a pouco descobriu como era ter um sonho (se não lhe fosse impossível, se pudesse sonhar um pouco mais, desejaria um aeroporto só para ela).

tinha como sua única posse pedaços de trapo pendurados sobre um corpo magro e encardido, que lhe escondia qualquer possibilidade de sensualidade, e um saco plástico com um cartão postal dentro, que ela achou na rua. nele, palavras que seu pouco vocabulário nunca conheceria: par avion. mas a imagem era linda, apesar dela não saber do que se trata - e, também, muitas pessoas dizem saber, mas por constrangimento. em silêncio, ela apenas assumia sua ignorância.

sempre que ouvia um avião, dizia que Deus lhe falava. ela que não sabia sequer dizer: Deus. um sorriso penso na sua boca banguela parecia entender. seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre.

ela não morava. sua casa era seu farrapo. seu corpo esquelético. ela talvez fosse o único ser na terra que podia dizer “sou-me”. em sua miséria, ela tinha a maior das posses. e ainda sim, ter o luxo de possuir um sonho. ver aviões partir.
seu sonho tornou-se obsessão. começou a segui-los, mesmo estes sendo-lhes impossíveis. era vê-los e ir até eles. de avião em avião, chegou ao tão sonhado aeroporto (o sonho acabara-lhe de ser o sonho num sonho).

seus olhos de tão abertos, pareciam tocar os aviões, mesmo eles a metros longos de distância. começou então, como numa espécie de ritual, a dançar, mexendo seus ossos quase descarnados, descoordenadamente, sem muita ordem. como sempre foi sua vida.

sem saber como, talvez pela movimentação ritualística involuntária, chegou na pista dos aviões. ela se extasiava com a dimensão de mundo que nunca teve para si. um espaço que enfim cabia teu parco corpo. um espaço do tamanho do ser que era ela.

a voz de deus lhe soou mais alta que o normal. ele agora lhe falava dentro. ela fecha os olhos. tremendo seus órgãos de pássaro natimorto, ela abre os olhos. seu sonho vinha para abraçar-lhe. tudo o que ela podia fazer era retribuir-lhe. foi de encontro a ele. fechou os olhos.

pela primeira vez em sua vida pode ver, ter e ser seu sonho: um avião de partida.

(um cartão é encontrado solto na pista. lia-se: par avion)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Alberto Caeiro, para abrir a primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Saudosinski

A Menina de Lá

para Fê

O passarinho
des-
apareceu de
cantar

...

Eeu?
Tou fazendo
saudade.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Mesa

sento à mesa
(a minha, esta)

ainda não posta
ela me esconde

um copo
um prato

: uma fome

(do tamanho de minha saudade)

ela posta
aos poucos me revela

o silêncio das manhãs
(disse-me que o silêncio é a mais sincera das respostas)

às vezes esqueço

outro
copo prato (você)

hesito

um (novamente : eu)

a mesa

(da última vez você disse que precisava ir –
partir)

lições de ausência

: ir exige tempo e, acima de tudo, delicadeza.

você se foi
paciente e delicada

a mesa posta

(agora minha)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Natureza Morta

quiseram ao animal chamar-lhe filho. e este, brincadamente sobre suas quatro patas e rabo balançando felicidade, sabia ser - dentro de suas limitações - uma criança. foi até aí.

mesmo as crianças, apesar dos direitos, têm suas obrigações. e com o animal não seria diferente. impossibilitado pela sua natureza sem jeito, tentava executar as ordens que lhe eram dadas com a alegria dos que saltam do precipício e na queda lembra-se de que precisava de uma corda para se proteger. sem a corda que o salvaria, tudo o que fazia era amor inocente de quem brinca.

impacientes, deram-lhe a sacrifício, ele que já havia o feito, amando sem saber o quê.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Stand-By

off line

...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Correspondência

correria até sua residência. não sei onde resides. e falo menos de casa do que de onde vives. e onde vives é o segredo que me te guarda.

e falo menos de vozes: escrevo. o papel é minha voz que chega ao teu ouvido. o que te chega é branco. e o que te dou é minha residência. meu segredo.

respondemos-nos juntos as palavras que não são ditas e somente o som no abraço: coração com coração.

aprendi a levitar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

o outro sou

tenho, em todo universo, como única posse, meu corpo. nele habita todos os seres esparsos no universo que o circunda. quero saber de mim: vejo-me no espelho-outro. e não me vejo. vejo o outro em mim e o que vejo? apenas o espelho.

talvez estivesse falando de uma coisa única - e agora estou - mas sei que há sutilezas que fazem dos átomos matérias únicas: falo de indivíduos.

o que vêem em mim é sempre mais do que sou, mas nada além do que mostro. e todos mentem. o que de fato vejo? infinitésimas paredes brancas me foram dadas para que minha imaginação fizesse orgia. invento em cada ser um universo particular. que é meu universo. e cada outro ser vê em outro ser universos particulares que também são seu universo. e a soma desses universos é o que se chama Deus - que evoco o léxico por falta de nome e inclusão.

as paredes brancas me são agora desenhos infantis que pinto e as sinto com êxtase de criação. e quando desejo alcançar o que não sou são desenhos infantis que pergunto cadê. a resposta não vem e o que se tem é uma vernissage no limbo.

as cores me sufocam e sou um deslumbrado. alegria me consome vida. alegria de criação é um orgasmo. quase-morte. em meu deslumbramento me perco na cromatografia de universos em bricolage.

evoco Deus e Ele não vem. evoco qualquer força acima de meu corpo mas ela não vem. espero (nunca virá). um branco me assalta a vista como um relâmpago. e penso ser o tal que espero e que mais tarde saberei que nunca virá. agarro-me a essa alvura para que eu tenha motivo para respirar. e na verdade, sei que isto não é motivo. minto uma vida que não tive - e não terei.

emaranho-me em universos que não são meus e os possuo e são minhas invenções e não é nada além que o universo que sempre inventei. sou pulcinella, doutore, arlequim. a ocasião faz a máscara. me perdi em mim mesmo.

o raio branco me salva de algo que não saberei nunca. o Deus que inventei é o que me salva do oco policromático.

talvez após a minha morte, a minha metamorfose final seja a soma de todos os universos que vi(vi), que criei.

e a soma de todas as minhas cores inventadas é o mais puro branco de mim.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

Desejo

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

(Herberto Helder)

domingo, 20 de julho de 2008

Amor

era uma vez não sei o quê.

um homem, um animal, em ser , um ente.

:um assassino.

e também eu.

ele carregava diversas mortes, como se a própria a tivesse encarnado.

(ele não me disse palavra, mas conheço esse olhar por ancestralidade)

nessa vez - foi única,fulminante, fulgás - era como se Deus se inclinasse para tocar o humano e assim formarem o infinito - nossos olhos se espelharam.

e estavam fechados - amor de cego.

o silêncio de um mergulho - amor de surdo-mudo.

o que falavam-se eram corpos.

o olhar assassínio me era um tiro na nuca, eu de frente. um tiro nele.

espalharam-se todas as nossas crianças, mulheres, amores, flores - mortos. corpos de vísceras.

uma mão me espreme o estômago: a dele; seu estômago quer fugir tudo dentro. mas, o assassino.

era uma vez - num átimo de eternidade

: eu

(sim)

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Elefante Vermelho

movimentos de cabeças de fora das portas para a rua. eu na rua: semi distraído; acordado pela discrepância dos habitantes daquela rua que iria dar para o que me paralisa. palavras ilegíveis me violentam o ouvido. todas ao mesmo tempo tentam invadir minha audição, que não dá conta de tantos alfabetos.

uma palavra me invade o tímpano e percute e faz eco na memória: morreu.
(meu Deus, quem a essa hora do dia, podia me por em lugar tão obscuro, de onde eu ocupava exatamente o extremo oposto?)

sigo. não: vou com minhas pernas, que caminham incertas, rumo a não sei onde. meu corpo sofre os espasmos da não concordâcia entre as lateralidades. eu não sei pra onde ir.

minha visão é assaltada pelo cruzamento. pelo que havia nele. vejo: um carrinho majestoso ocupando solitário todo o cruzamento. cacto do deserto. o vejo imponente como um prédio que me interpela. como um prédio que me faz girassol.

ele estava ali, solitário, verde folhas sobre rodas. vazio. silencioso.

não era mudez. a palavra gritava em minha cabeça, tirava minha paz. morreu. morreu.

chego à esquina do cruzamento. cabeças antecedem corpos, olhando na direção oposta à minha, n'outro extremo. a minha é atraída. uma multidão que se anulava em sua cor ocre. destacada apenas por um elefante vermelho, luminoso. ele era barulhento, o elefante. magnético. todos eram atraídos por seu imã. eram seus súditos.

mesmo outros veículos de passagem diminuiam um pouco a velocidade para poder se curvar diante o grande elefante. deviam-lhe referências. meu olhar era fuga e queda. perplexo. pedra viva.

num átimo, a palavra cedeu espaço a outro pensamento: no meio da multidão há um anônimo. a ele se deve a visita do grande elefante. a ele se deve o espetáculo.

foi afastado de seu companheiro que o espera - paciente - no cruzamento. espera como todos os dias acontecem. espera seu alimento. espera ser preenchido, carregado. desbravador.

desbravadores os dois. o companheiro demora mais que o normal. não sabe que ele não voltará nunca mais. que será levado pelo grande elefante vermelho. e ele, paciente, carregado por mãos insensíveis, desconhecidas. que não sabe nada dele. que não o alimentarão.

um paciente, o que ele é. um paciente e um anônimo. que não voltarão a se encontrar. nunca mais.

ele morreu.

(padeço)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Ode Descontínua e Remota Para Flauta e Oboé

I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


(Hilda Hilst, IN Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Corpo

e então, tornou-se algo vivo. naquele momento, quando a música percorria artérias, e se fazia glóbulos, moveram-se chãos e o abismo se fez. os pés andavam sobre nada; as mãos tentavam tocar o infinito; o corpo todo tentava abraçar os céus. a cabeça deixava-se levar.

um glóbulo cilíndrico percorria o corpo dentro. movia a ponta dos dedos que precedia o toque. percorria o olho antes que este pudesse mundo. percorria cada osso carne nervo veia néfrons: sinapses de êxtase.

uma alegria rompante arrebata cada mímimo de célula. cada célula podia, enfim, dizer: eu.

movimentos frenéticos: a música acelerava, as palavras tomavam o corpo e dele faziam movimento. tomavam dentro e movia fora. dolores: uma insuportável dor de parto tomava o corpo. (explosão) - (arrebatamento): profanos.

garganta seca; respiração arfante; articulações frágeis. e uma difícil alegria.

insuportável.

o corpo diminuía. queria tomá-lo a alegria, ela querendo se fazer corpo. e estava prestes a arrebentá-lo. estava prestes ao rebento, o corpo. uma estrela de mil pontas.

leveza de calvino: o corpo padece. vida.

a garganta não se sabe seca. a fadiga está aquém do corpo. movimento puro. pluma flutuando no infinito.

estado nascente: um corpo amanhece.

uma alegria. difícil.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Por Não Estar (-me) distraído


para r.

por estar distraído ando e acho. o que acho me marca. marco. acordo e olho o local da marca. vazio. acabou a epifania.

não estou distraído.

olho o que já não vejo. vejo o que invento. e invento meu fracasso. meu fracasso vira fantasia. e essa, realidade. ilusão. essa que eu criei. por não estar distraído.

desenho no ar uma letra e um . : seu nome. a letra é sua identidade; o . , o que re-significo. memórias inventadas.

o .

: céu e inferno que me dá. que te invento. que te faço.

tornou-se letra e . ; não fiquei imune: novo batismo. nova nascença.

tornei-me letra e . .

tenho um nome só para ti. um nome que é meu e seu. um nome seu que é seu e meu. nos identificamos num universo que habita . . o . é nosso segredo.

invenção é perfeita. quase me invade eros. tanatos me espreita . alegria de criação. quase-morte.

quase: (seguro um touro pelos cornos. a tensão entre nós, é minha razão. às vezes o touro me treme: quase sou-te.)

esqueço. logo me distraio

: você


terça-feira, 10 de junho de 2008

[In-()]

podia dizer assim: é amor. mas o ideal, o preciso, o fatal seria: amor.

está além. é desde sempre e sendo assim é e não. está além de mim, do corpo-alma, vocêu: um corpo sujeito à magia da gravidade. todos os corpos caindo no mesmo precipício e ao mesmo tempo.

e ao mesmo tempo esse amor é solidão. e por escolha: ao contrário do amor: paradoxo.

explicar o que? e eu é que sei? explica as dúvidas que tem em si? diga essa coisa que sente não sei onde, e que não é apenas dor. sei, dirá que de fato não é dor.

é o que não tem nome. inconjugável. inespacial. indescritível. inominável. in- ().

é como dizer o nome de algo que é infinito por ter o infinito contido em si, e já não se chama infinito. eterno? eterno tem um começo. não.

algo que é tudo e nada, em toda a extensão de ambos: (). qual é o nome disso. que nome que se dá ao que se sente ao se ver uma chuva de granizo ou um fim de tarde cor de vanila? qual o nome do outro que se vê diante de si e que sou eu e que és tu? in-()

o amor que tu me deste era vidro e se quebrou. não: era diamante, raro e precioso. diamante o chamo por falta de nome e fôlego.

Rimbaud a uma razão: olho para o lado, o amor; para o outro lado um novo amor.

eu, olho uma multidão: amores. meu corpo padece.

amo só. numa multidão. somente com algo dentro de meu corpo-alma.

um insuportável sem nome

terça-feira, 27 de maio de 2008

História

o corpo de um torturado
escava através dos séculos
sua intensidade de dor e morte

mas Deus, para quem não existe a história
como atura o horror
desse instante
onde só o que muda é a boca
que grita?

(Vera Lucia Oliveira, IN Tempo de Doer/Tempo di Soffrire. Roma: Pellicani Editore, 1998)

Escrever

escrever.

sobre o quê? sobre as coisas que não se vive, sobre a quase-impossibilidade da vida? escrever sobre o espaço que preciso para escrever e não tenho? sobre um corpo que preciso para escrever e que está morto?

escrever sob.

sob um céu cinza que mata o corpo morto; que asfixia meu pulmão. uma escrita morta. escrever só vale se sangrar. mas, e o sangue? secou há tempos. apenas o pó rubro e seco sobre o papel.

sob um labirinto claustrofóbico escrevo. num lugar que é o mundo e não é meu. Paris só o é fora do quarto, alarmaram-me duas mulheres o qual confio e amo. e que estiveram em Paris e dentro do quarto. mais ainda dentro do quarto. o quarto onde desnudavam sua solidão. um grito mudo num quarto ecoante. (uma está morta; a outra morre em estado progressivo.)

e quando não se tem nem quarto nem Paris, se escreve sobre e sob o quê?

escrevo procurando. durante. em estado gritante de desespero. (sem sangue)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Carta aos Frátrios

Meu Deus, por que me abandonastes
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

(Carlos Drummond de Andrade)



d. está enlouquecendo.

diz que a força que possuia para manter sua sanidade está definhando. já faz algum tempo, vem cometendo alguns assassinatos. está cego. e o que é pior ainda: está surdo. justamente ele que era um apreciador da audição; está como que jogando pérolas aos porcos. está num autismo que não tem quem o tire. anda encurvado, de cabeça baixa, procurando um buraco no qual ele entrou há tempos e não sabe. se cobre (e se aquece) de uma solidão claustrofóbica. tomou gosto por ficar no quarto estreit'escuro. fica horas e horas olhando o escuro, até fazer parte dele. sim, ele conseguiu fazer-se invisível. inclusive para ele mesmo. não sente cansaço, não sente fome, não sente sono. mesmo o sono flamejando-lhe o olhar, evidenciando o óbvio. seu olhar é de ameixas secas. deu sua alma ao diabo: disse que não precisava mais dela e seria desnecessário vendê-la, ele que só quer o quarto estreit'escuro. não quer saber de amores e os que teve, fez questão de esquecer. acha que o amor é para quem tem competência e alguma disponibilidade para a vida. o que fez do que viveu? sua resposta foi o silêncio, a negritude que o apagou, o quarto estreit'escuro e um pouco de alienação. antes do quarto, costumava matar neurônios vendo programas religiosos e pornografias baratas. principalmente aquelas que esfregam cenas de sangue e assassinato explícitos na nossa cara. no começo foi difícil, mas depois até achou normal. e foi nessa mesma época que se convenceu de que deveria cometer o seu. acha que está morrendo um pouco por dia e que a qualquer momento chegará a hora fatal. d. está enlouquecendo. só não achei jeito para lhe dizer que ele já está morto.


peço vossa ajuda,


d.


sexta-feira, 25 de abril de 2008

Leveza


vamos a um pouco de contraponto:

Pour Faire le Portrait d'un oiseau - Jaques Prévert

Preindre d'abord une cage
avec une porte ouverte
peindre ensuite
quelque chose de joli
quelque chose de simple
quelque chose de beau
quelque chose d'utile
pour l'oiseau
placer ensuite la toile contre un arbre
dans un jardin
dans un bois
ou dans un forêt
se chacer derrière l'arbre
sans rien dire
sans bouger...
Porfois l'oiseau arrive vite
mais il peut aussi bien mettre longues années
avant de se décider
Ne pas se décourager
attendre
attendre s'il le faut pendant des années
la vitesse ou la lenteur de l'arrivée de l'oiseau
n'ayant aucun rapport
avec le réussite du tableau
Quand l'oiseau arrive
s'il arrive
observer le plus profond silence
attendre que l'oiseau entre dans la cage
et quand il est entré
fermer doucement la porte avec le pinceau
puis
effacer un à un tous les barreaux
en ayant soin de ne toucher aucunedes plumes de l'oiseau
Faire ensuite le portrait de l'arbre
en choisissant la pluis belle de ses branches
pour l'oiseau
peindre aussi le vert feuillage et la fraîcheur du vent
la poussière de soleil
et les bruit des bêtes de l'herbe dans la chaleur de l´été
et puis attendre que l'oiseau se décide a chanter
Si l'oiseau ne chante pas
c'est movais signe
signe que le tableau est mauvais
mais s'il chante c'est bon signe
signe que vous pouvez signer
Alors vous arranchez tout doucement
une des plumes de l'oiseau
et vous écrivez votre nom dans un cois du tableau.


Para Pintar o Retrato de Um Pássaro (trad. Silviano Santiago)

Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada a dizer
sem se mexer...
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que ele leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se peciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.

Visceral

... e escrever só vale se sangrar.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Aquilo Que Não Se Vê


a cidade me é curiosa.

com seus prédios imponentes. carros levando solidões por seus caminhos. congestionamento de solidões. as outras todas nas calçadas: muitas caminhando apressadas; outras à espera de um ônibus; à espera de uma carona. à espera de alguém que a tire dessa coisa de estar só.

bancas de jornais e revistas com letras dissolvidas em pedaços ilegíveis de papel. sons indecifráveis a qualquer Édipo. e todos os sons imagens palavras ilegíveis para e a mim.

um odor carbônico me seca as narinas. lixos no chão que não me atraem. voa indigente e rasteiro pelo vento que o empurra aqui e lá. e um lixo, que entre os voadores, se mantém intacto.

intacto e invisível. tão indigente quanto o outro. sujo. preto, úmido. fétido. com pelos sobre sua superfície visível. escondido de toda a paisagem urbana por trapos encardidos. o kitsch do lixo urbano.

salvo o cheiro, ninguém o nota. e quando o nota, não se sabe a origem do odor pútrido. ninguém o vê, salvo quando se nota um entulho à frente e com a etiqueta de um lord das ruas se desvia sem questionar o que.

e o que é?

note você mesmo. tal lixo se encontra em qualquer esquina. em qualquer praça. morto de frio em qualquer madrugada. algo com corpo e talvez um pouco de alma. algo como eu. algo como você. algo como um humano.

não fosse ele estar escondido nos trapos do anonimato e na arrogância de nossa indiferença.

e quem se importa em salvar um corpo semi-almático, nós que sequer alma temos? preciso me salvar: minha salvação não depende do outro. muito menos d'um corpo-outro fétido, encoberto em trapos.

um outro que ignoro, porque se olho mais que um átimo de segundo ele vira meu espelho. e aprendi que o homem não vem dos macacos. papai me disse mamãe me disse e o papa também!

passo (até com certo constrangimento) ao lado desse corpo (vivo ou morto, não me importa) como se não pertencesse a meu mundo. um mundo que inventei.

um mundo o qual posso ignorar o espelho que revela minha miséria.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Somos todos macacos, macacos

"Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isso é
ser uma pessoa?"
(Clarice Lispector, in A hora da Estrela)

e continuo.

(e me desculpe, não dá para fazer literatura, se era este o esperado.)

e como era de se esperar, a coisa toda já aconteceu. Foi assim:
"ah!, acho que foi o pai."
"não, não: foi a madrasta com ciúmes!"
"mas, e a mãe que nem chora... aí tem coisa"
"e ela tem um namorado, acho que os dois... ela não tinha boa relação com o pai da tadinha."

um anjo de cinco anos morre. a data é 25 de março de 2008. é lançado de um prédio, do sexto andar. quem o fez, cortou com uma tesoura a rede de proteção (que talvez protegeria o anjo), antes de dar corpo ao ato. o anjo voa e queda ao chão. uma morte. mais um anjo.

e mais um esquecimento.

a pouco tempo do acontecimento, a morte já foi esquecida. o que ficou já é outra coisa: quem matou? e a forma como a coisa toda é levada é tão nojenta quanto os critérios de votações a que se prestam milhões de pessoas para se eliminar alguém num programa de reallity show.

pai mãe madrasta, seja quem for: será descoberto. a questão que me fica é: até quando? a medicina já se avançou para a cura de muitas doenças. e quem tem a fórmula para a cura da babárie primitiva do ser humano?

exclama-se: a que ponto chegamos!
exclamo: a que ponto ainda estamos!

e a culpa é lançada para todos e de todos os lados. menos para o de cada um de nós, que somos tão culpados quanto. culpados por se calar diante de um corpo jovem e agora sem vida; pelo barulho que nada mais é que expiação de culpa. assassinatos que cometemos de olhos fechados.

e antes que a coisa toda desse um fim em si mesmo ao esquecimento, este já veio há muito: pensar no pai na madrasta na mãe no namorado se existe ou não um deus, é esquecer de um corpo que se foi. um corpo dissolvido num circo de cegos clinicamente sadios.

e que todos nós assassinamos.

(quem cala sobre seu corpo, consente na sua morte - Menino, Milton Nascimento)

e não sei se vale a pena (e se me lembrarei de!) continuar...

sábado, 12 de abril de 2008

Eu

cérebro no peito...
coração na cabeça...
um corpo para quê.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

J.H.


"o sertão é o mundo."

"o senhor tolere, isso é o sertão."

(João Guimarães Rosa)

“Era um pedaço de carne, já sem roupa, destruído. Mas eu sabia que era uma criança."
(Sgt. Sérgio Navega)


mas é justamente em minha tolerância que escrevo.

você, anjo no asfalto, seguro, preso em seu cinto. protegido. sem nada o que pudesse te tirar dessa proteção. sem nada que o ameaçasse e o fizesse voar. mesmo sendo um anjo. você com seis anos, com papai mamãe e família. e o mundo ao redor.

o mundo, anjo, não é só papai e mamãe e família, tem o homem bo/m/au. mas você não sabe. não teve a chance de saber. no carro a passeio, uns homens entram no carro do papai e pedem para sair todo mundo. todo mundo corre assustado, anjo, e você não podia protegê-los. mas estava bem protegido com seu cinto, e nada - nada!- o tiraria de sua bolha protetora. mamãe até que tentou, mas um dos homens estava bravo e com bastante pressa.

daí, meu anjo, o homem saiu rápido com o carro do papai, sem que a mamãe pudesse lhe retirar. e você preso em seu cinto "coloque o cinto, filhinho, senão pode se machucar". e você, anjo, colocou. e se machucou, e muito. e nada te tiraria dali, mesmo que um homem correndo com o carro do papai te deixasse pendurado pelo cinto, tendo seu corpinho de criança consumido pelo asfalto durante um dois três sete oito dez doze treze quatorze... quinze minutos.

e você não sabia o que acontecia, a cada quilômetro percorrido aumentava o número de pessoas na rua, e gritavam para que os homens parassem o carro do papai e você não sabia o porquê, você preso no cinto se corroendo pelo asfalto, se batendo na roda do carro que rodava, pintando a rua com seu sangue vermelho. você, anjo, se esvaia do mundo, ia para onde vão os anjos.

nem que você fosse gato, anjo, que possui sete vidas (você sabia?), não conseguiria viver: sua vida foi ficando, uma a uma, à cada quilômetro que percorria, a cada quilômetro seu corpinho diminuía. (e nem deu tempo de saber quantas vidas tinha o gato e quantos segredos têm o mundo. nem soube que as pessoas não eram só papai mamãe e família.)

acabou seu sopro.

um moço te retratou bem: ele sabia que você era pequenininho, apesar de estar olhando para um pedaço de carne, destruído. sabia que falaram de você na televisão? um monte de gente chorando, todo mundo falava de você. uma revista até colocou uma foto sua bem grande na capa. e nela tinha uma frase bem grande, que até me deixou surpreso: ...NÃO VAMOS FAZER NADA?".

e não fizemos

: sua mãe se junta à outras mães pedindo justiça em silêncio. as pessoas que te viram e choraram, já estão rindo com outras coisas que você não conheceu e não teria a menor importância se não conhecesse. são pequenas para ti, meu anjo. a televisão é um circo de divindades. aquela revista que colocou sua foto bem grande mentiu. ela também não fez nada.

hoje nem sei se lembram do seu nome ou o que te aconteceu. dizem que anjos têm que morrer para virar homem. e você, anjo, fez o caminho contrário: deixou sua alma no asfalto para se tornar um anjo indigente.

nesse espaço anônimo, anjo, deixo registrado o lembrete para que todos os homens nunca se esqueçam do que te ocorreu. nunca esqueça as suas marcas deixadas em algum asfalto em algum lugar desse mundo indigente naquela quarta feira de fevereiro, dia 02, no ano de 2007.

a você João Hélio Fenrandes, deixo aqui seu/meu sangue. a marca que deixaste no asfalto.

todos somos culpados.

(outro anjo morre, jogado do sexto andar)..... continua ( )

quinta-feira, 27 de março de 2008

Dentro

-menino, ajeita essa coluna, levanta essa cabeça!
-é que eu sou pra dentro...

quinta-feira, 20 de março de 2008

Summer's Gone

no rádio ouço Placebo, Summer's Gone. fugindo do dia, o dia inteiro. querendo encontrar alguém que ainda não existe. ou alguém que existe e não se pode estar. Summer's Gone. E com ele era, também, para ter ido o meu tédio. e não foi.

me cerca por onde vou, por onde estou. fujo do mundo indo de encontro a ele, mas o único lugar para o qual ele me manda é justamente o único lugar onde não queria estar: minha casa. aquela que não é minha.

Summer´s Gonne. e achei que com ele iria esse eterno domingo que não acaba. o que se foi são essas pessoas que não acho, os lugares que não existem, o mundo que inventei... fica-me o impossível.

tenho saudade de um passado que não existiu; de um passado que só existe em minha cabeça. e é isso que angustia. e quando olho fora de minha lembrança, o domingo está ali: azul, límpido, brilhante, com um céu imenso e vasto. em câmera lenta. olho o domingo-espelho e a imagem que reflete é a de um rosto morto, vencido pelo tédio. um corpo andante pelo azul afora esperando a hora de morrer.

esperava que, quando o verão se fosse, encontrasse folhas mortas que ressurgiriam na primavera. que encontrasse um céu cinza e um vento gelado que fizesse com que eu sentisse meus ossos; sentir que , afinal, existo.

o céu está azul. mas já é outono. o tédio ainda é do eterno verão. mas talvez eu tenha exagerado um pouco e tomado a parte pelo todo.

hoje.

summer´s gonne...

Outono

Chanson d'Automne

Paul Verlaine

Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure;

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
Deçà, delà
Pareil à la
Feuille morte.


Canção de Outono

(Tradução: Guilherme de Almeida)
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.

E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
De outrora.

E vou à toa
No ar mau que voa.
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Écrire

a escrita vai se fazendo. preguiçosa e despretensiosamente. é difícil. mas não dá para parar silmplesmente por causa de dificuldades lingüísticas tais como:

y-gosto de kandinski, miró.
x-gosto de magritte, picasso. caravaggio...
y-mas peraí: caravaggio é outra coisa.
x-não é não: são só nomes.

a máquina vai funcionando. entre uma preguiça e outra, a escrita vai se (trans)-formando. mais um rascunho que fica.

fim(-n-)da última postagem.

terça-feira, 4 de março de 2008

Seca

... e o leito se fazia vazio (de nós dois)...

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ponto Vazio


para Su, em Paris



é estranho o luto sem a morte. o luto sabendo da possibilidade da volta. um luto que faz a viagem ficar pela metade. a outra em Paris: perto e longe. perto porque a ausência está aqui, presente em cada vazio; no banco ao meu lado, no ponto na próxima cidade, na próxima cidade, em tudo. mas tudo isso terá volta. então porque o luto? por que essa falta se faz corpo?


para disfarçar a ausência e o luto seguir em paz, algumas providências:


a) não sentar no banco de sempre;

b) evitar a janela, para não ver ausências;

c) ir jantar como se fosse encontrar alguém, por mero acaso;

d) escrever, fazendo o exercício da memória.


o luto, se seguida as instruções, se faz suportável. mas, ainda assim, porque o luto?


PORQUE VOCÊ EXISTE.

EXISTÍMO-NOS.


(saudades)...



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Solidão e Outras Modernidades


e se perdendo nos olhares dos outros passageiros, perdia-se de si. era essa sua solidão: acompanhada. emaranhada em outras tantas que não aguentam o espaço íntimo de seus corpos e querem transcender-se no outro. ela olhava à sua volta e imaginava as estórias por detrás desses olhares: neblina. nas outras estórias, queria encontrar a sua própria. que se perdeu e ela não sabe onde. não encontrava.
sons ensurdecedores. burburinhos de falas alheias, motores, máquinas e outras modernidades. ela não ouvia. os ruídos que a acometiam eram os seus. dentro. e a isolava do mundo de fora, assim como todos estavam isolados entre si. acorrentados em seus ruídos internos.
e que ousadia salvaria (se é que se possa chamar de salvação!) a dor dessa solidão que acometia a moça só em meio a massa humana que a cincundava? olhava pela janela e a visão de fora era vertiginosa. pessoas andavam emaranhadas e únicas. não existia nada além de seus caminhos - que não sabiam, de fato, se eram realmente seus (os umbigos eram seus universos.) olhava as pessoas no ônibus: sua visão escurecia. o ruídos internos ficavam insuportáveis. sua cabeça latejava. as pessoas fora dentro ela circulavam em sua mente, gritavam. enlouqueciam.
precisava salvar-se, salvar sua vida. precisava fazer algo e era urgente...
virou-se para o lado, sem olhar a quem, vomitou algo (talvez sua solidão):

-bom dia...

um sorriso alheio salvou-lhe a vida. a viagem seguiu sem mais ruídos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Minha Mãe

para minha Mãe


fios brancos em seus cabelos desgrenhados. um sorriso insano na face. papadas e rugas e dentes postiços acendem sua velhice. um olhar cansado, disfarçando ainda quererem viver.
tentativas de iniciar uma conversa que acabou há anos-luz. um assunto que nunca começa, porque já foi terminado há muito. tentativas de me pôr numa família. eu que não sou familiar. você tenta bestamente. irrita-me com sua bondade-plástica. sei o real motivo: colocar-me num espaço que não é o meu. colocar-me sob seu domínio, debaixo de suas asas. coruja que já assassinei.
você chorou quando eu disse que ia sair de casa, eu que já não estava. eu que não pertencia àquele lugar. a sua casa. o seu mundo. você chorou, querendo que eu não fosse, eu que já havia partido e você sabia. chorou porque sabia. disse que eu não gostava de você, que não gostava de vocês, que vocês eram tudo o que eu tinha. e você sabia que mentia, sabia que eu sabia que você mentia para eu ficar. eu que já havia partido.
e o mundo era meu lugar, minha casa, enquanto eu não achava meu lugar, meu lar. pertenço aonde estou. e você odiava o mundo e falava de Deus e outros mundos inexistentes para mim, na tentativa de me fazer voltar ao seu, ao seu mundo que nunca pertenci, ao seu mundo que reneguei quando te assassinei como coisa hierárquica e te-me transformei em pessoa.
podíamos estarmo-nos presentes apenas no silêncio. mas para você era insuficiente, tinha de dizer nadas para irritar-me, invocando todo meu sarcasmo, meu silêncio irônico-fatalício.
você sabia que eu podia matá-la e você pedia isso, pedia-me para aniquilá-la, só para, depois, me fazer sentir culpa, ficar o resto de minha morte sob seu túmulo, devoto de uma santa de plástico, e você com seu sorriso camuflado em suas lágrimas.
não, eu não vou chorar, sequer sentir culpa. conheço seus truques e estratagemas para me fazer ficar. eu que já parti e sabes disso. e é o ódio que sentimos - eu, do seu amor-plástico e você do mundo-meu-que-me-ganhou - que nos aproxima. nos faz cúmplices de um segredo-nosso. de um amor que não aceitamos e temos. o meu, de assassiná-la e o seu de me querer em seu mundo. e nosso amor é o maior de todos. um amor que nasceu desde sempre. um amor que não entendemos e que nos mata um para o outro. um amor que faz com que nos suicidamos para você-eu. esse amor demente, insano. que nos faz duvidar. que não sabemos.

e simplesmente existe. independente de não existirmos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

E Ele me Leu...

E eu achava que só eu é que era estranho o suficiente para pensar em algo desse tipo...


"O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece."

-Charles Bukowski-

Borges e Eu

-Jorge Luis Borges-
(P.S.: não achei o original.)


Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agra­dam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atribu­tos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamen­te, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Exercício*

*texto feito numa oficina de prosa com o tema "fofoca". Se não fosse a oficina, não sei se o faria. Taí o resultado. Ah, sem título por enquanto. Aí vai:


Olha só aquela racha, tá se achando. Olha lá, vê só como ela ri, precisa desse escândalo todo?! E por falar nisso, olha o decote... não!, dá para ver até o umbigo. E ela se inclina toda pra falar com ele... hum. Vou ficar quieta. Ah não!, me descupa, mas não dá! Você viu? Precisa pegar na perna do bofe pra falar? Olha vou ser sincera: eu nem gosto que me toque! O quê? mas o Augusto era meu namorado, é diferente. Ah é? Namorado dela? Outro, né?!, porque é um por semana. Já faz seis anos?! Ah, não sei, só sei que semana passada vi ela com outro... e olha, é de tudo quanto é idade, viu?! Tava com um bofe... já era um senhor! Foi sim, foi depois do almoço. Ah não?! o pai dela? Tudo bem, mas com esse vestidinho, não sei, não, boa coisa não é. Conheço esse tipo. Olha lá, falei, viu ela descruzando as pernas?! Deu pra ver até o útero. Aposto que tá sem calcinha. É... deixa pra lá, a vida é dela, não tenho nada a ver com isso. Eu não queria falar nada não, mas ele só deve estar com ela pra ir pra cama. Como não?, você acha, vulgarzinha desse jeito?! E esse cabelo... tá parecendo uma puta. Ah, mas não é verdade? Tereza... Tereza... olha lá, ela tá vindo. Péssimo gosto, que cabelo. Tereza, fica quieta.

-Oi Fofa, tudo bem?, você conhece a Tereza, minha amiga? Ah, o namorado! Não, noivos?! Olha que graça Tereza, que bonitinhos. Então passa lá no salão que eu tenho umas coisas pra te mostrar. Que isso, eu é que sinto um enorme prazer em poder mexer nesse cabelo maravilhoso! Tá bom, tchau, hein... bye, bye, linda...

Hum, noivos. Vaca... ai que ódio, ainda por cima ela me chamou de Jorge, eu já falei pra ela que é Salete, SA-LE-TE... Ah, vambora, Tereza, qu'eu já tô passada.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Canto Fúnebre

O canto da parede do quarto, numa fresta entre o guarda roupa e a parede era o seu lugar. Seu até que alguém colocasse algo ali. Na verdade, era um desabitado.

Em algum momento em sua vida fez parte de um círculo social onde era chamado de amigo. Ele não se lembra bem, e hoje não sabe e nem imagina o significado dessa palavra. Nem pensa nisso. Simplesmente não pensa. Seus olhos ficam vidrados, ávidos, num ponto vazio no espaço, que facilmente acredita-se que ele avista o chão.

Chão. Foi ele.

Sua boca adormecida era uma casa abandonada onde reinara o silêncio. Saia delas apenas heras decrescentes de líquido transparente e viscoso.

Amigos. Se ele tivesse consciência do que era essa palavra – hoje inexistente a si – chamá-la-ia de ausência. Sua única companheira.

O que é homem, quando sua única posse é o corpo? Antes, quando tinha algo além, era cercado de outros corpos que o simpatizavam. Ele até chegou a acreditar na palavra amizade. Não, mais que isso: era uma família que ele possuía. Fora e dentro de sua casa.

Mas agora, mudo, que palavra lhe salvaria? Ausência. Alguém em plena sanidade não arriscaria chama-la de palavra. Guarda-se ela muda dentro de si. Ausên... Ele, que já não pensava, teve a ousadia e coragem de conviver com essa in-palavra. Pois com ela não se escolhe o convívio. Acontece.

Quantos corpos passaram por sua vida. Quantas vidas compartilhadas. Solidões acompanhadas. Agora sem companhia nenhuma. Sua solidão à mercê da ausência. Na derrelição, no abandono. Num canto que não lhe pertencia. Seu último abraço foi dado a um chão. Como um beijo na boca. Um encontro precipitado há anos, desde o primeiro beijo naquela ardência de líquido transparente. Este não era viscoso.

O beijo da morte. O chão. Foi ele.

Tirou-lhe todos os corpos de sua vida. O que é o homem, quando sua única posse é o corpo? E o que é o homem, quando nem seu corpo lhe pertence?

Uma fresta. Um espaço vazio entre o guarda roupa e a parede.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Brasileira Preta


8 p.m.
espero o ônibus. atrasa mais que o normal. mesmo indo a alguns pontos antes, o pego lotado. tenho um livro às mãos. tentarei o milagre de lê-lo durante a viagem. próximo ponto: mais pessoas entram onde não cabe mais ninguém (generosidade seria isso: dar espaço ao outro onde não mais têm?) mochila nas costas, mão no ferro e na outra o livro. as pessoas passam. e quase me levam. respiro fundo e mantenho a atenção no livro (ou tento...) alguns passam para onde já não tem mais espaço. e tentam me levar. quando não eu, minha mochila. outros param. e se escoram em mim. tento me esquivar, mas inútil. paro a leitura: 1x0 pra galera do ônibus. tento me distrair com a paisagem externa concretacinzentada. o homem ainda escora em mim. (acho que agora intuo o que Clarah queria dizer com "brasileira preta" - woman is the nigger of the world.) a viagem é conturbada. mesmo com mais espaço, as pessoas ainda tentam me levar. desço do ônibus com pernas e braços doendo (academia pra quê?) vou ao trabalho. nada. vou ao banco. nada ainda. não sei mais aonde ir... nada... volto pra casa depois de tanto protelar em algo já dado: não há pra onde correr.

pois é, Rimbaud: ao me foder, nem era meio-dia.

P.S.: o livro que eu lia se chama: "É isto um homem?".
qualquer coincidência é mera semelhança.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Chuva



chove na cidade.

na cidade que já é parada, algumas gotas vindas do céu me páram; mais ainda. estátua. as gotas me petrificam em frente a tv e não faço idéia do que elas me dizem, a tv, a cidade, a chuva...

durmo.

sonho. e no sonho chove. não faço distinção entre dormir e manter-me acordado. em ambos os casos chove. e o que fazer? fazer algo mudaria o tempo? círculo de sal em frente a porta não adianta. nada adianta.

ouço o som da chuva, as gotas batendo no telhado. ouço o sussurro da tv. já não ouço. ao meu redor o silêncio do mundo. e o meu: de estátua.

na cidade, apenas os prédios enfrentam a chuva. enfrentam implacáveis, sem poder de escolha. paro em frente ao prédio e ele me intimida. não tenho sua coragem. me resta apenas dormir numa casa que não é minha. sob a chuva, sonhando com uma chuva que não sei onde acontece.

ela acontece, talvez, em mim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A Janela

Estava diante da janela. E a imagem além desta se fazia inexistente. A inexistência a levava a um tempo ancestral.

Atrás dela, ele e a porta: semicerrada.

Ela, em alguns instantes, num átimo de esquecimento, imagina-o olhando-na; talvez ele ainda a desejasse, pensava. Sentia-o vindo em sua direção, os braços dele envolvendo os seus. A miragem se desfazia; outra vez a imagem além-janela.

Atrás desta imagem estaria, talvez, a cidade. Ele costumava caminhar com ela pelas ruas, até que encontrasse um lugar "que eram os dois", ele dizia. Ela nunca gostava do lugar escolhido, mas também não se importava, ele estava ali. Agora, os lugares habitavam o esquecimento.

As mãos dele no ombro dela; desciam até ficar mãos nas mãos. Um leve suspiro dela. Enganara-se: lembrou-se do eterno ritual da despedida. Novamente a janela. Ela que lhe dava sempre a última lembrança dele, assim que ouvia a porta se fechar. Último enquadramento antes do próximo depois.

Mas ela já estava à janela. A porta nem sequer lhe anunciou. Olhava algo além da janela: talvez estivesse revisitando sua memória. A janela diante de si, a porta atrás: cerrada. Na sala, somente ela.

Uma gota tocava seu rosto. "Acho que vai chover", pensou. E fechou a janela.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

E os Grilos Cantavam

Para Bárbara Fontes

E os grilos cantavam.

Ou talvez fosse apenas o som de nossas cabeças, após uma explosão de ruídos, repentinamente deparar-se com o vácuo do silêncio.

À nossa frente, o manto azul enegrecido que veste a noite. Manto que nos faz ver cada olhar solto no céu: a luz de cada estrela. O manto estava esplêndido. Seu esplendor levava qualquer olhar ao céu, tal como a gravidade trazia qualquer corpo ao chão.

A noite respirava com exaustão. Seu ar, solto como algo vivo, percutia onde pudesse ressoar sons: folhas de árvores, telhados, carros, poeiras...uivos. Queria ser ouvida de qualquer forma, como um viajante solitário no deserto. Daí, então, seus uivos.

A noite era uma linda dama solitária.

Em meio ao manto, em algum ponto do manto, vozes sussurravam aleatórias.Premeditavam o adormecer. Vozes sonolentas. Divagavam entre silêncio e outro. Sempre o silêncio. Solto aos sons silenciosos do vento, das folhas, uivos. Sons etéreos. Sons silenciosos.

Havia a cumplicidade de dois criminosos que infrigiram a humanidade. Não se arrependem. Não vão se render. Era o amor recíproco: aquele amor de quem ama a luz do sol; aquele de quem ama o verde das folhas; o vai evem das ondas. O amor de duas crianças que brincam na lama sem culpa.

As vozes eram trocadas pelos corpos como cartas em caixas de correio. Não havia a pretensão da resposta. Não havia o tédio da espera. É que o tempo se ausentara e o espaço já não mais importava.. O vôo foi alçado. Juntamente às vozes evasivas, aleatórias. Alçaram vôo como fumaça buscando a imensidão do céu, numa dança suave e lenta.

Entre as vozes que se alternavam, o silêncio era cada vez maior.Esses intervalos de silêncio minimalista pesavam as pálpebras. Os olhos estavam em chamas. Pediam ao sono, a escuridão. As palavras já não eram tão legíveis. Os olhos já não suportavam mais o peso da música silenciosa: do vento que percute, da dama que uiva, do grilo que canta sob o manto escuro com olhar de estrela.

- Os grilos cantam?- indagaram as vozes quase ilegíveis. As pálpebras cederam. O sono mergulhou na negritude do inconsciente.

E os grilos cantavam.





terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Sobre o Eterno e o Efêmero

O Eterno:

And death shall have no dominion (Dylan Thomas)

And death shall have no dominion.
Dead mean naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan’t crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Through they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.

E a morte não terá nenhum domínio (tradução de Ivan Junqueira)

E a morte não terá nenhum domínio.
Nus, os mortos irão se confundir
Com o homem no vento e a lua do poente;
Quando seus alvos ossos descarnados se tornarem pó,
Haverão de brilhar as estrelas em seus pés e cotovelos;
Ainda que enlouqueçam, permanecerão lúcidos,
Ainda que submersos pelo mar, haverão de ressurgir;
Ainda que os amantes se percam, o amor persistirá;
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Aqueles que há muito repousam sob as dobras do mar
Não morrerão com a chegada do vento;
Contorcendo-se em martírios quando romperem os tendões,
Acorrentados à roda da tortura, jamais se partirão;
Em suas mãos, a fé irá fender-se em duas,
E as maldades do unicórnio os atravessarão;
Despedaçados por completo, eles não se quebrarão.
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Não mais irão gritar as gaivotas aos seus ouvidos
Nem se quebrar com fragor as ondas nas areias;
Onde uma flor desabrochou não poderá nenhuma outra
Erguer sua corola para as rajadas da chuva;
Ainda que estejam mortas e loucas, suas cabeças
Haverão de enterrar-se como pregos através das margaridas,
Irrompendo no sol até que o sol se ponha.
E a morte não terá nenhum domínio.


O Efêmero:

A Morte Absoluta (Manuel Bandeira)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

[Fragmento]

Ela olha-o como se olhasse a si mesma. O que ela vê então? Não sabe a distinção entre ela e o que ela vê dela, fora de si. Seu reflexo reflete a si num espelho que não o seu. Não sabe até que ponto ela é no outro. Sabe apenas que é bom. Dói. Mas é alegre. É um livrar o pé do sapato apertado.É poder mexer cada dedo deste pé que estava aprisionado. O outro. Ela viu a si no outro. Encontrou-se fora de si, louca que era. O encontro foi possível somente na loucura? Talvez. O que há de se ganhar na mais plena sanidade?Os loucos sabem. E ela sabe. Só que é grande demais pra reduzir à palavra esse saber que é vasto. Seu corpo dói de se contorcer, de tanta alegria que não cabe nela. Ela chora de rir tamanha é a dor. Ela conseguiu. Ela pode, enfim, dizer antes da morte chegar:"eu me encontrei". É ter a coragem dos suicidas ou mesmo das ondas do mar, que para ser onda, tem de se quebrare anular-se em espuma, apenas para ser. E ela é: "eu me encontrei"- ela disse.

Não: eu me encontrou-me.

Era o outro que a salvou do frio da morte.
Disse ela ao outro: eu te amo-me.

E assim eles foram. Até hoje e desde sempre, eles agora são É.

[Fragmento]

O amor que tu me deste era vidro e se quebrou. Não: o amor que eu lhe tinha era diamante. Raro, precioso. Como a pele virgem sendo tocada.Frágil como a vida. Qual o tamanho do amor que sentes por mim? Mece por si mesma. Vou pensar qual o tamanho do amor que sinto por ti. Não sei se consigo mensurar tal imensidão. Talvez seja de uma grandeza que não caiba em mim. Tentarei ousar: tu me amas? Pois, olhe, se não me amas... Não! nada. Não sei se sobreviveria à resposta. Bem, me entregarei agora a uma modesta ousadia: Eu te amo?: Eu te amo...: Eu te amo:: Eu te amo.

Eu te amo diamante. Com toda sua dureza e fragilidade. Fragilidade que ao ser quebrada, os pedaços não se refazem. Você pode cuidar do meu amor-diamante? Iria te pedir para cuidar de minha vida, minha alma; mas desisti, pois ela a mim pertence. Não posso morrer para ti. Morrer para quem amo. Não posso por em suas mão de éter o peso de meu diamante. Senão a culparia do que só eu tenho culpa.

Olhei-te sem que me notasse. Estava sob montes e sobre pontes vendo-a em deslumbramento. Amei-te. O brilho em mim se fez. Ao brilho, viu-me. Cativou-me. Cativei-te. Agora o que somos um ao outro, não sei. Só sei que somo-nos.

Strauss toca a valsa encantada e meus pés involuntários e incondicionais deslizam em seu chão. Onde está você que não dança comigo? Esta valsa está solitária. E nela tudo o que tenho é meu amor por ti. Que se amplia ao se adicionar saudade.

Fôssemos nós reflexos refletidos recíprocamente, dir-ter-ia: eu te amo-me. Mas não. Meu corpo é um espaço íntimo: eu te amo; minha alma é vasta:eu te amo.

Deves tu me amar? Não. Ame a ti mesmo. É o que faço: amo a mim mesmo para ter alguma força para poder te amar.

[Fragmento]

Até então, o máximo de mim era a pele. Os olhos estavam nos números, nos motores, nos concretos, estavam. E apenas os olhos faziam sua função de olhar. Fora da pele havia o tudo envolto. Um tudo-plástico. Um plástico que me deixava a pele oca. Uma bexiga com gás hélio voando aleatória ao nada. Sim, uma bexiga. Não, não havia o gás hélio. O vôo era um aleatório-nada rumo ao nada.

Num filme vi um homem que sobreviveu à guerra. Um ela o fez viver. Ele queria dar uma vida àquele ela. Uma vida fora dele. Aquele ela não tinha nada a não ser o seu de dentro. Sim, era uma vida. Sim, era o gás hélio. Sim, um olho-corpo-alma. Não, não havia o vôo. Talvez o destino.

Enchi-me de gás. Reneguei o de fora e entrei em meu para dentro. Sim, o gás virou água. Sim, pesou mais leve que o ar. Voei: voei para dentro e cai no infinito de mim.
Os olhos já não viam mais números, motores, concretos. Sim, eu via. “Um ela?” Um olho-corpo.


Não: renego a guerra!
“Um ela, sim?” Não.


Saio de dentro como um corpo tomado pela gravidade. Desculpe-me mim: olho: vejo números, motores concretos. Estou numa guerra dentro de mim.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Prelúdio de Uma Saudade

"eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram."
-Herberto Helder-


sentado à sua frente
(imaginando talvez que eu estivesse em algum céu impossível)
ouço
seus lábios se dilatarem e sou
cego.
chega até mim o seu
sorriso
e o sinto em todo o
corpo

o meu amanhece

:e antes
que meus lábios possam fazer qualquer coisa
antes
de viver,
a saudade de tocar o seu sorriso
que ainda não
nasceu
e o meu
espera

(como um cego espera o semáforo se abrir)-(em algum céu impossível)
sentado à sua frente.

Equilíbrio

um santo que não acreditava em Deus disse:

"a chave para o reino dos céus
está em nossos pés"

em coral unissono - por um instante -
os pés de todo o mundo abandonaram o chão:

a Terra saiu de seu eixo.