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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Genesis

uma voz em meu umbigo
‘Eloi, Eloi, lama sabachthani’,
sussurra o diabo dentro do barro onde
sou corpo.

o deus oblíquo sopra sobre
a voz dentro,
moldando a argila
para a sua primeira morte

do barro
o barro
ao barro

massa líquida que me desfaço
céu inferno
.....................impossíveis

demiurgo volátil que me invento caos.

domingo, 7 de novembro de 2010

Aqui

gotas de soro -
tempo fraturado à porta de vidro
....................................................: transparência

em meus olhos
(como se a qualquer momento alguém (me) tirasse o torpor do coma ausente)

à cada

vento
sombra
sons o

não

deixa-me paralítico

ainda.
aqui.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Aniquilação pelo rosto

para cp ou ma ou, simplesmente,
um segredo na noite dentro

olhar um rosto é lentamente - difícil terror na noite dentro.

: árvore abatida machucando
o coração da terra. lembrança da neblina deformada,
límpida fusão no quando


olho o. rosto de. vagar


olhar.

...........lento.

......................g o z o s a m e n t e


(como quem morre nas mãos de um deus de éter)


olhar o rosto lentamente. uma única vez.
(sem voltar sequer a face para o poema que se esvai,
quando a segunda)

: olhar um rosto é dizer nunca mais

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sede

a dor pedia líquido à carne, mas seca, ela só pôde oferecer areia àquela que tinha sede.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Névoa-nada

quando vi a sombra de teu rosto, meu corpo em flecha arqueou à possibilidade do outro e se lançou no abismo de um encontro. num átimo de chegar ao toque, a possibilidade mostrou-se névoa e eu infinitava profundezas com a imagem ainda do sorriso extinto.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Ausência íntima

- olá, quanto tempo... saudades de você!
- (eu também...)

sábado, 28 de novembro de 2009

O enigma da carne

a mulher olha a chuva como quem fosse. cada gota era uma dor molhada de sua carne. como quem ela anda anda. passos incertos. pisa em chãos que abismam passos. sua pele some na carne. ela entra em si a cada passo.

(caminhos do dentro)

o escuro a acalanta e pergunta por que triste - em escuro a resposta:

"se o que nos origina nos é carne, qual é a origem de uma carne que só se sabe dentro de um centro que não pele?"

o escuro a envolve ainda mais. a carne como a chuva se faz gotas que a carrega.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Recado sussurrado no olho do furacão

Respire no coração da pergunta; ali habita o sopro da duração.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Buracos

I

há um buraco no calendário do tamanho da falta que sinto em mim. e não sei quem o que ou coisa alguma. o que me acontece é que quando olho para o calendário, vejo nele um buraco maior que a parede. e o buraco me espelha: está em mim. ontem de manhã, quando caminhava para distrair minha fome, uma criança me olhou nos olhos, bem no fundo dele e falou "mãe, você viu que homem esburacado?!""quieto menino, e fique longe dos poços." o buraco é tão grande que já está dando o que falar na rua! já não consigo esconder minha fome.

II

sabe, às vezes encontro alguns amigos que não os vejo há tempos e não consigo sentir mais o abraço deles. eles me abraçam e quando viro as costa eles estão ali, atrás de mim. olham-me constrangidos, desviam seus olhos dos meus, dizem de forma quase ilegível apenas "sinto muito", e do mesmo jeito que me atravessaram vão embora. as pessoas não sabem lidar muito bem com seus buracos...

III

conheci, dia desses, um homem curioso. profissão: poceiro. sim, ele faz poços. de início tive medo, não sabia que houvesse pessoas fazendo buracos pelo mundo afora. na ocasião em que o conheci, ele estava no fundo do poço. disse-me que se pudesse passaria horas ali. anos mais tarde, passo por este poço e penso: o homem vive agora como sempre quis, na sua hora eterna.

IV

"tatu não vê a lua" - e se visse com certeza não seria tatu: ele vive em buracos. tem fobia por qualquer claridade. dói-me a vista à exposição solar.

V

se eu resolvesse gritar, quem ouviria? li num livro de física que o som não se propaga no vácuo. e como gritar com um buraco desses pegado à vida? a gente se acostuma fácil às coisas. não me incomodo com o silêncio.

(lembro-me de ter lido em algum lugar, mas não lembro onde "e esse silêncio que não é mudez"...)

... desconfio que sinto saudades não sei de quê...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Navios

estava no cais. sempre estava. gostava de ver navios. há tempos havia tomado gosto por eles. não sabia quando começou. talvez muito antes de sua existência.

seus olhos grudavam no casco do navio, como as ferrugens em suas placas de metal. a própria ferrugem o fascinava. não se sabia a cor de seus olhos: se eram castanhos ou se foram tomados pelo encanto que tinham pela ferrugem.

a imensidão do navio. sua grandeza majestosa. o sol no poente, visto de trás do navio era pouco, perto de sua grandeza. o menino crescia junto.

crescia e se rendia à beleza do transatlântico.

todo os dias o menino ia de encontro ao navio, como o fígado Prometéico que se regenerava à águia faminta - como um amante obediente à sua amada.

mas o navio não se regeneraria após a partida. ao singrar à curva do horizonte, nunca mais voltaria àqueles olhos castanhos.

os olhos, ferrugem, sabiam muito bem: eram sol que se apresentava independente das nuvens que pudessem lhe cobrir a cidade, razão de seu brilho.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Amnésia

quis esquecer-me do mundo para que ele me esquecesse. e esquecia-me a cada dia do que imaginava o que poderia ser eu mundo outro. desconhecia-me conhecendo. e com o olhar primeiro sobre as coisas, ia me despindo do equívoco de "eu sei". sabia a cada dia que se podia saber mais e não sabendo não podia me bastar à vastidão do tudo-nada. queria transcender a margem de qualquer coisa que se fizesse existência; desinventar qualquer verdade que enquadrasse a imaginação que fosse; desfazer qualquer limite que me limitasse ir além. além quê? ainda não cheguei a quê.

sou-te e me é novo a cada dia. somo-nos segredos a serem celebrados diariamente.

(e se acaso me encontrasse e a cada dia lhe fosse lançado olhares estranhos como algo que te tivesse descoberto pela primeira vez, algo nunca testemunhado por aqueles olhos ávidos de ti? teria coragem de se expor a quem, a cada dia, te adentrava como uma luz que revela a escuridão?)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pequenas Epifanias

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida’:


Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 22/4/1986 )

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sobre Flores e Trens Cargueiros

um trem cargueiro em mim se torcendo dentro. circunvoluções em volta do mesmo espaço mínimo e íntimo. peito de um corpo.

uma flor fora: cuidado que não me dou (as flores sobreviverão antes que eu despetale?). amanhã, talvez, a flor morra.

antes, tenta vencer, indo de encontro ao céu ao sol e só. com sua pouca e parca força. porcamente acinzentada. amarela. pálida. (recolhida de algum jardim drummondiano).

o trem dentro quer a flor fora: convulsão estática.

o corpo pára numa tensão de rocha labiríntica prestes à erupção. a flor à espreita fora provoca o trem dentro. dentro, o trem - no espaço intransponível - quer o cio da flor.

a flor em sua vaidade opaca quer o único ser que a vê. um ser que ao mínimo contato a estraçalhará. ela quer a violência dele.

a caminho de sua definhação ela se excita, como um sexo diante outro, desejante. sua pulsão máxima. quase brilho. ouropel.

o trem se debate no peito mínimo que já há muito não lhe cabe. a flor se desepera em êxtase. o corpo não vê flor nem trem. não tem memória.

a flor despetala-se num vaso poeirento num quarto qualquer. o trem turbulento, faz formigações no corpo.

e em mim, um mal estar no corpo - pele descascando - pensando no que poderei fazer amanhã.

(que talvez não venha)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Partida

a velha queria ir ao aeroporto ver aviões partir. sonhou com um enorme, grande, na noite anterior àquela que descobriu ter um sonho. não sabia como eram os aeroportos. e a pouco descobriu como era ter um sonho (se não lhe fosse impossível, se pudesse sonhar um pouco mais, desejaria um aeroporto só para ela).

tinha como sua única posse pedaços de trapo pendurados sobre um corpo magro e encardido, que lhe escondia qualquer possibilidade de sensualidade, e um saco plástico com um cartão postal dentro, que ela achou na rua. nele, palavras que seu pouco vocabulário nunca conheceria: par avion. mas a imagem era linda, apesar dela não saber do que se trata - e, também, muitas pessoas dizem saber, mas por constrangimento. em silêncio, ela apenas assumia sua ignorância.

sempre que ouvia um avião, dizia que Deus lhe falava. ela que não sabia sequer dizer: Deus. um sorriso penso na sua boca banguela parecia entender. seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre.

ela não morava. sua casa era seu farrapo. seu corpo esquelético. ela talvez fosse o único ser na terra que podia dizer “sou-me”. em sua miséria, ela tinha a maior das posses. e ainda sim, ter o luxo de possuir um sonho. ver aviões partir.
seu sonho tornou-se obsessão. começou a segui-los, mesmo estes sendo-lhes impossíveis. era vê-los e ir até eles. de avião em avião, chegou ao tão sonhado aeroporto (o sonho acabara-lhe de ser o sonho num sonho).

seus olhos de tão abertos, pareciam tocar os aviões, mesmo eles a metros longos de distância. começou então, como numa espécie de ritual, a dançar, mexendo seus ossos quase descarnados, descoordenadamente, sem muita ordem. como sempre foi sua vida.

sem saber como, talvez pela movimentação ritualística involuntária, chegou na pista dos aviões. ela se extasiava com a dimensão de mundo que nunca teve para si. um espaço que enfim cabia teu parco corpo. um espaço do tamanho do ser que era ela.

a voz de deus lhe soou mais alta que o normal. ele agora lhe falava dentro. ela fecha os olhos. tremendo seus órgãos de pássaro natimorto, ela abre os olhos. seu sonho vinha para abraçar-lhe. tudo o que ela podia fazer era retribuir-lhe. foi de encontro a ele. fechou os olhos.

pela primeira vez em sua vida pode ver, ter e ser seu sonho: um avião de partida.

(um cartão é encontrado solto na pista. lia-se: par avion)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Alberto Caeiro, para abrir a primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.