segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Verão
sua voz amputada de meus ouvidos. não mais gosto de ti quando calas: está de fato ausente. o sol rasga o céu tirando dele a noite. estou no claro e me sinto cego, sabe que não sei como me comportar na luz. aliás, estou no claro e com sono e sem pálpebras.
escondo-me em escombros em construção e destruo minha alma. ela está quente e derretendo. me acostumei (ou acostumou-me?) com a escuridão e o frio. quero entrar num freezer, mas estou claustrofotofóbico. a multidão de raios solares me deixou assim. estou sem jeito de ser. sem saída. tento o de dentro, mas não encontro. não o vejo na luz.
a luz me faz tua voz ser diferente. não a reconheço, mesmo se você me falasse diretamente ao ouvido. claro assim, sou surdo de ti. procuro agonizante tua voz numa multidão polifônica. e mesmo que a sua esteja, na luz ela tem outras propriedades; outros vocabulários, outras entonações, gírias, discursos... não te reconheço na luz.
penso-me agora incompatível a teu sangue, você que se sabe na claridade e eu, no escuro. (será que me reconheces na luz?)
algo está acontecendo neste lugar iluminado. ouço moedas caindo num recipiente metálico aos meus pés. uma multidão de vozes me cercam. talvez você esteja por perto, mas não sei se pode me salvar.
você me reconhece na luz?
algo está acontecendo. mas você não sabe do que se trata. ou sabe?
(o verão me engoliu o que eu poderia ter sido)
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Buracos
há um buraco no calendário do tamanho da falta que sinto em mim. e não sei quem o que ou coisa alguma. o que me acontece é que quando olho para o calendário, vejo nele um buraco maior que a parede. e o buraco me espelha: está em mim. ontem de manhã, quando caminhava para distrair minha fome, uma criança me olhou nos olhos, bem no fundo dele e falou "mãe, você viu que homem esburacado?!""quieto menino, e fique longe dos poços." o buraco é tão grande que já está dando o que falar na rua! já não consigo esconder minha fome.
II
sabe, às vezes encontro alguns amigos que não os vejo há tempos e não consigo sentir mais o abraço deles. eles me abraçam e quando viro as costa eles estão ali, atrás de mim. olham-me constrangidos, desviam seus olhos dos meus, dizem de forma quase ilegível apenas "sinto muito", e do mesmo jeito que me atravessaram vão embora. as pessoas não sabem lidar muito bem com seus buracos...
III
conheci, dia desses, um homem curioso. profissão: poceiro. sim, ele faz poços. de início tive medo, não sabia que houvesse pessoas fazendo buracos pelo mundo afora. na ocasião em que o conheci, ele estava no fundo do poço. disse-me que se pudesse passaria horas ali. anos mais tarde, passo por este poço e penso: o homem vive agora como sempre quis, na sua hora eterna.
IV
"tatu não vê a lua" - e se visse com certeza não seria tatu: ele vive em buracos. tem fobia por qualquer claridade. dói-me a vista à exposição solar.
V
se eu resolvesse gritar, quem ouviria? li num livro de física que o som não se propaga no vácuo. e como gritar com um buraco desses pegado à vida? a gente se acostuma fácil às coisas. não me incomodo com o silêncio.
(lembro-me de ter lido em algum lugar, mas não lembro onde "e esse silêncio que não é mudez"...)
... desconfio que sinto saudades não sei de quê...
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Navios
seus olhos grudavam no casco do navio, como as ferrugens em suas placas de metal. a própria ferrugem o fascinava. não se sabia a cor de seus olhos: se eram castanhos ou se foram tomados pelo encanto que tinham pela ferrugem.
a imensidão do navio. sua grandeza majestosa. o sol no poente, visto de trás do navio era pouco, perto de sua grandeza. o menino crescia junto.
crescia e se rendia à beleza do transatlântico.
todo os dias o menino ia de encontro ao navio, como o fígado Prometéico que se regenerava à águia faminta - como um amante obediente à sua amada.
mas o navio não se regeneraria após a partida. ao singrar à curva do horizonte, nunca mais voltaria àqueles olhos castanhos.
os olhos, ferrugem, sabiam muito bem: eram sol que se apresentava independente das nuvens que pudessem lhe cobrir a cidade, razão de seu brilho.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Amnésia
sou-te e me é novo a cada dia. somo-nos segredos a serem celebrados diariamente.
(e se acaso me encontrasse e a cada dia lhe fosse lançado olhares estranhos como algo que te tivesse descoberto pela primeira vez, algo nunca testemunhado por aqueles olhos ávidos de ti? teria coragem de se expor a quem, a cada dia, te adentrava como uma luz que revela a escuridão?)
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Pequenas Epifanias
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida’:
Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
(Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 22/4/1986 )
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Sobre Flores e Trens Cargueiros
uma flor fora: cuidado que não me dou (as flores sobreviverão antes que eu despetale?). amanhã, talvez, a flor morra.
antes, tenta vencer, indo de encontro ao céu ao sol e só. com sua pouca e parca força. porcamente acinzentada. amarela. pálida. (recolhida de algum jardim drummondiano).
o trem dentro quer a flor fora: convulsão estática.
o corpo pára numa tensão de rocha labiríntica prestes à erupção. a flor à espreita fora provoca o trem dentro. dentro, o trem - no espaço intransponível - quer o cio da flor.
a flor em sua vaidade opaca quer o único ser que a vê. um ser que ao mínimo contato a estraçalhará. ela quer a violência dele.
a caminho de sua definhação ela se excita, como um sexo diante outro, desejante. sua pulsão máxima. quase brilho. ouropel.
o trem se debate no peito mínimo que já há muito não lhe cabe. a flor se desepera em êxtase. o corpo não vê flor nem trem. não tem memória.
a flor despetala-se num vaso poeirento num quarto qualquer. o trem turbulento, faz formigações no corpo.
e em mim, um mal estar no corpo - pele descascando - pensando no que poderei fazer amanhã.
(que talvez não venha)
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Partida
tinha como sua única posse pedaços de trapo pendurados sobre um corpo magro e encardido, que lhe escondia qualquer possibilidade de sensualidade, e um saco plástico com um cartão postal dentro, que ela achou na rua. nele, palavras que seu pouco vocabulário nunca conheceria: par avion. mas a imagem era linda, apesar dela não saber do que se trata - e, também, muitas pessoas dizem saber, mas por constrangimento. em silêncio, ela apenas assumia sua ignorância.
sempre que ouvia um avião, dizia que Deus lhe falava. ela que não sabia sequer dizer: Deus. um sorriso penso na sua boca banguela parecia entender. seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre.
ela não morava. sua casa era seu farrapo. seu corpo esquelético. ela talvez fosse o único ser na terra que podia dizer “sou-me”. em sua miséria, ela tinha a maior das posses. e ainda sim, ter o luxo de possuir um sonho. ver aviões partir.
seu sonho tornou-se obsessão. começou a segui-los, mesmo estes sendo-lhes impossíveis. era vê-los e ir até eles. de avião em avião, chegou ao tão sonhado aeroporto (o sonho acabara-lhe de ser o sonho num sonho).
seus olhos de tão abertos, pareciam tocar os aviões, mesmo eles a metros longos de distância. começou então, como numa espécie de ritual, a dançar, mexendo seus ossos quase descarnados, descoordenadamente, sem muita ordem. como sempre foi sua vida.
sem saber como, talvez pela movimentação ritualística involuntária, chegou na pista dos aviões. ela se extasiava com a dimensão de mundo que nunca teve para si. um espaço que enfim cabia teu parco corpo. um espaço do tamanho do ser que era ela.
a voz de deus lhe soou mais alta que o normal. ele agora lhe falava dentro. ela fecha os olhos. tremendo seus órgãos de pássaro natimorto, ela abre os olhos. seu sonho vinha para abraçar-lhe. tudo o que ela podia fazer era retribuir-lhe. foi de encontro a ele. fechou os olhos.
pela primeira vez em sua vida pode ver, ter e ser seu sonho: um avião de partida.
(um cartão é encontrado solto na pista. lia-se: par avion)
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Alberto Caeiro, para abrir a primavera
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
Mesa
(a minha, esta)
ainda não posta
ela me esconde
um copo
um prato
: uma fome
(do tamanho de minha saudade)
ela posta
aos poucos me revela
o silêncio das manhãs
(disse-me que o silêncio é a mais sincera das respostas)
às vezes esqueço
outro
copo prato (você)
hesito
um (novamente : eu)
a mesa
(da última vez você disse que precisava ir –
partir)
lições de ausência
: ir exige tempo e, acima de tudo, delicadeza.
você se foi
paciente e delicada
a mesa posta
(agora minha)
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Natureza Morta
mesmo as crianças, apesar dos direitos, têm suas obrigações. e com o animal não seria diferente. impossibilitado pela sua natureza sem jeito, tentava executar as ordens que lhe eram dadas com a alegria dos que saltam do precipício e na queda lembra-se de que precisava de uma corda para se proteger. sem a corda que o salvaria, tudo o que fazia era amor inocente de quem brinca.
impacientes, deram-lhe a sacrifício, ele que já havia o feito, amando sem saber o quê.
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Correspondência
e falo menos de vozes: escrevo. o papel é minha voz que chega ao teu ouvido. o que te chega é branco. e o que te dou é minha residência. meu segredo.
respondemos-nos juntos as palavras que não são ditas e somente o som no abraço: coração com coração.
aprendi a levitar.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
o outro sou
talvez estivesse falando de uma coisa única - e agora estou - mas sei que há sutilezas que fazem dos átomos matérias únicas: falo de indivíduos.
o que vêem em mim é sempre mais do que sou, mas nada além do que mostro. e todos mentem. o que de fato vejo? infinitésimas paredes brancas me foram dadas para que minha imaginação fizesse orgia. invento em cada ser um universo particular. que é meu universo. e cada outro ser vê em outro ser universos particulares que também são seu universo. e a soma desses universos é o que se chama Deus - que evoco o léxico por falta de nome e inclusão.
as paredes brancas me são agora desenhos infantis que pinto e as sinto com êxtase de criação. e quando desejo alcançar o que não sou são desenhos infantis que pergunto cadê. a resposta não vem e o que se tem é uma vernissage no limbo.
as cores me sufocam e sou um deslumbrado. alegria me consome vida. alegria de criação é um orgasmo. quase-morte. em meu deslumbramento me perco na cromatografia de universos em bricolage.
evoco Deus e Ele não vem. evoco qualquer força acima de meu corpo mas ela não vem. espero (nunca virá). um branco me assalta a vista como um relâmpago. e penso ser o tal que espero e que mais tarde saberei que nunca virá. agarro-me a essa alvura para que eu tenha motivo para respirar. e na verdade, sei que isto não é motivo. minto uma vida que não tive - e não terei.
emaranho-me em universos que não são meus e os possuo e são minhas invenções e não é nada além que o universo que sempre inventei. sou pulcinella, doutore, arlequim. a ocasião faz a máscara. me perdi em mim mesmo.
o raio branco me salva de algo que não saberei nunca. o Deus que inventei é o que me salva do oco policromático.
talvez após a minha morte, a minha metamorfose final seja a soma de todos os universos que vi(vi), que criei.
e a soma de todas as minhas cores inventadas é o mais puro branco de mim.
sexta-feira, 25 de julho de 2008
terça-feira, 22 de julho de 2008
Desejo
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
domingo, 20 de julho de 2008
Amor
era uma vez não sei o quê.
um homem, um animal, em ser , um ente.
:um assassino.
e também eu.
ele carregava diversas mortes, como se a própria a tivesse encarnado.
(ele não me disse palavra, mas conheço esse olhar por ancestralidade)
nessa vez - foi única,fulminante, fulgás - era como se Deus se inclinasse para tocar o humano e assim formarem o infinito - nossos olhos se espelharam.
e estavam fechados - amor de cego.
o silêncio de um mergulho - amor de surdo-mudo.
o que falavam-se eram corpos.
o olhar assassínio me era um tiro na nuca, eu de frente. um tiro nele.
espalharam-se todas as nossas crianças, mulheres, amores, flores - mortos. corpos de vísceras.
uma mão me espreme o estômago: a dele; seu estômago quer fugir tudo dentro. mas, o assassino.
era uma vez - num átimo de eternidade
: eu
(sim)
sexta-feira, 18 de julho de 2008
Elefante Vermelho
uma palavra me invade o tímpano e percute e faz eco na memória: morreu.
(meu Deus, quem a essa hora do dia, podia me por em lugar tão obscuro, de onde eu ocupava exatamente o extremo oposto?)
sigo. não: vou com minhas pernas, que caminham incertas, rumo a não sei onde. meu corpo sofre os espasmos da não concordâcia entre as lateralidades. eu não sei pra onde ir.
minha visão é assaltada pelo cruzamento. pelo que havia nele. vejo: um carrinho majestoso ocupando solitário todo o cruzamento. cacto do deserto. o vejo imponente como um prédio que me interpela. como um prédio que me faz girassol.
ele estava ali, solitário, verde folhas sobre rodas. vazio. silencioso.
não era mudez. a palavra gritava em minha cabeça, tirava minha paz. morreu. morreu.
chego à esquina do cruzamento. cabeças antecedem corpos, olhando na direção oposta à minha, n'outro extremo. a minha é atraída. uma multidão que se anulava em sua cor ocre. destacada apenas por um elefante vermelho, luminoso. ele era barulhento, o elefante. magnético. todos eram atraídos por seu imã. eram seus súditos.
mesmo outros veículos de passagem diminuiam um pouco a velocidade para poder se curvar diante o grande elefante. deviam-lhe referências. meu olhar era fuga e queda. perplexo. pedra viva.
num átimo, a palavra cedeu espaço a outro pensamento: no meio da multidão há um anônimo. a ele se deve a visita do grande elefante. a ele se deve o espetáculo.
foi afastado de seu companheiro que o espera - paciente - no cruzamento. espera como todos os dias acontecem. espera seu alimento. espera ser preenchido, carregado. desbravador.
desbravadores os dois. o companheiro demora mais que o normal. não sabe que ele não voltará nunca mais. que será levado pelo grande elefante vermelho. e ele, paciente, carregado por mãos insensíveis, desconhecidas. que não sabe nada dele. que não o alimentarão.
um paciente, o que ele é. um paciente e um anônimo. que não voltarão a se encontrar. nunca mais.
ele morreu.
(padeço)
terça-feira, 8 de julho de 2008
Ode Descontínua e Remota Para Flauta e Oboé
I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
(Hilda Hilst, IN Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)
quarta-feira, 2 de julho de 2008
Corpo
um glóbulo cilíndrico percorria o corpo dentro. movia a ponta dos dedos que precedia o toque. percorria o olho antes que este pudesse mundo. percorria cada osso carne nervo veia néfrons: sinapses de êxtase.
uma alegria rompante arrebata cada mímimo de célula. cada célula podia, enfim, dizer: eu.
movimentos frenéticos: a música acelerava, as palavras tomavam o corpo e dele faziam movimento. tomavam dentro e movia fora. dolores: uma insuportável dor de parto tomava o corpo. (explosão) - (arrebatamento): profanos.
garganta seca; respiração arfante; articulações frágeis. e uma difícil alegria.
insuportável.
o corpo diminuía. queria tomá-lo a alegria, ela querendo se fazer corpo. e estava prestes a arrebentá-lo. estava prestes ao rebento, o corpo. uma estrela de mil pontas.
leveza de calvino: o corpo padece. vida.
a garganta não se sabe seca. a fadiga está aquém do corpo. movimento puro. pluma flutuando no infinito.
estado nascente: um corpo amanhece.
uma alegria. difícil.