quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Brasileira Preta


8 p.m.
espero o ônibus. atrasa mais que o normal. mesmo indo a alguns pontos antes, o pego lotado. tenho um livro às mãos. tentarei o milagre de lê-lo durante a viagem. próximo ponto: mais pessoas entram onde não cabe mais ninguém (generosidade seria isso: dar espaço ao outro onde não mais têm?) mochila nas costas, mão no ferro e na outra o livro. as pessoas passam. e quase me levam. respiro fundo e mantenho a atenção no livro (ou tento...) alguns passam para onde já não tem mais espaço. e tentam me levar. quando não eu, minha mochila. outros param. e se escoram em mim. tento me esquivar, mas inútil. paro a leitura: 1x0 pra galera do ônibus. tento me distrair com a paisagem externa concretacinzentada. o homem ainda escora em mim. (acho que agora intuo o que Clarah queria dizer com "brasileira preta" - woman is the nigger of the world.) a viagem é conturbada. mesmo com mais espaço, as pessoas ainda tentam me levar. desço do ônibus com pernas e braços doendo (academia pra quê?) vou ao trabalho. nada. vou ao banco. nada ainda. não sei mais aonde ir... nada... volto pra casa depois de tanto protelar em algo já dado: não há pra onde correr.

pois é, Rimbaud: ao me foder, nem era meio-dia.

P.S.: o livro que eu lia se chama: "É isto um homem?".
qualquer coincidência é mera semelhança.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Chuva



chove na cidade.

na cidade que já é parada, algumas gotas vindas do céu me páram; mais ainda. estátua. as gotas me petrificam em frente a tv e não faço idéia do que elas me dizem, a tv, a cidade, a chuva...

durmo.

sonho. e no sonho chove. não faço distinção entre dormir e manter-me acordado. em ambos os casos chove. e o que fazer? fazer algo mudaria o tempo? círculo de sal em frente a porta não adianta. nada adianta.

ouço o som da chuva, as gotas batendo no telhado. ouço o sussurro da tv. já não ouço. ao meu redor o silêncio do mundo. e o meu: de estátua.

na cidade, apenas os prédios enfrentam a chuva. enfrentam implacáveis, sem poder de escolha. paro em frente ao prédio e ele me intimida. não tenho sua coragem. me resta apenas dormir numa casa que não é minha. sob a chuva, sonhando com uma chuva que não sei onde acontece.

ela acontece, talvez, em mim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A Janela

Estava diante da janela. E a imagem além desta se fazia inexistente. A inexistência a levava a um tempo ancestral.

Atrás dela, ele e a porta: semicerrada.

Ela, em alguns instantes, num átimo de esquecimento, imagina-o olhando-na; talvez ele ainda a desejasse, pensava. Sentia-o vindo em sua direção, os braços dele envolvendo os seus. A miragem se desfazia; outra vez a imagem além-janela.

Atrás desta imagem estaria, talvez, a cidade. Ele costumava caminhar com ela pelas ruas, até que encontrasse um lugar "que eram os dois", ele dizia. Ela nunca gostava do lugar escolhido, mas também não se importava, ele estava ali. Agora, os lugares habitavam o esquecimento.

As mãos dele no ombro dela; desciam até ficar mãos nas mãos. Um leve suspiro dela. Enganara-se: lembrou-se do eterno ritual da despedida. Novamente a janela. Ela que lhe dava sempre a última lembrança dele, assim que ouvia a porta se fechar. Último enquadramento antes do próximo depois.

Mas ela já estava à janela. A porta nem sequer lhe anunciou. Olhava algo além da janela: talvez estivesse revisitando sua memória. A janela diante de si, a porta atrás: cerrada. Na sala, somente ela.

Uma gota tocava seu rosto. "Acho que vai chover", pensou. E fechou a janela.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

E os Grilos Cantavam

Para Bárbara Fontes

E os grilos cantavam.

Ou talvez fosse apenas o som de nossas cabeças, após uma explosão de ruídos, repentinamente deparar-se com o vácuo do silêncio.

À nossa frente, o manto azul enegrecido que veste a noite. Manto que nos faz ver cada olhar solto no céu: a luz de cada estrela. O manto estava esplêndido. Seu esplendor levava qualquer olhar ao céu, tal como a gravidade trazia qualquer corpo ao chão.

A noite respirava com exaustão. Seu ar, solto como algo vivo, percutia onde pudesse ressoar sons: folhas de árvores, telhados, carros, poeiras...uivos. Queria ser ouvida de qualquer forma, como um viajante solitário no deserto. Daí, então, seus uivos.

A noite era uma linda dama solitária.

Em meio ao manto, em algum ponto do manto, vozes sussurravam aleatórias.Premeditavam o adormecer. Vozes sonolentas. Divagavam entre silêncio e outro. Sempre o silêncio. Solto aos sons silenciosos do vento, das folhas, uivos. Sons etéreos. Sons silenciosos.

Havia a cumplicidade de dois criminosos que infrigiram a humanidade. Não se arrependem. Não vão se render. Era o amor recíproco: aquele amor de quem ama a luz do sol; aquele de quem ama o verde das folhas; o vai evem das ondas. O amor de duas crianças que brincam na lama sem culpa.

As vozes eram trocadas pelos corpos como cartas em caixas de correio. Não havia a pretensão da resposta. Não havia o tédio da espera. É que o tempo se ausentara e o espaço já não mais importava.. O vôo foi alçado. Juntamente às vozes evasivas, aleatórias. Alçaram vôo como fumaça buscando a imensidão do céu, numa dança suave e lenta.

Entre as vozes que se alternavam, o silêncio era cada vez maior.Esses intervalos de silêncio minimalista pesavam as pálpebras. Os olhos estavam em chamas. Pediam ao sono, a escuridão. As palavras já não eram tão legíveis. Os olhos já não suportavam mais o peso da música silenciosa: do vento que percute, da dama que uiva, do grilo que canta sob o manto escuro com olhar de estrela.

- Os grilos cantam?- indagaram as vozes quase ilegíveis. As pálpebras cederam. O sono mergulhou na negritude do inconsciente.

E os grilos cantavam.





terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Sobre o Eterno e o Efêmero

O Eterno:

And death shall have no dominion (Dylan Thomas)

And death shall have no dominion.
Dead mean naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan’t crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Through they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.

E a morte não terá nenhum domínio (tradução de Ivan Junqueira)

E a morte não terá nenhum domínio.
Nus, os mortos irão se confundir
Com o homem no vento e a lua do poente;
Quando seus alvos ossos descarnados se tornarem pó,
Haverão de brilhar as estrelas em seus pés e cotovelos;
Ainda que enlouqueçam, permanecerão lúcidos,
Ainda que submersos pelo mar, haverão de ressurgir;
Ainda que os amantes se percam, o amor persistirá;
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Aqueles que há muito repousam sob as dobras do mar
Não morrerão com a chegada do vento;
Contorcendo-se em martírios quando romperem os tendões,
Acorrentados à roda da tortura, jamais se partirão;
Em suas mãos, a fé irá fender-se em duas,
E as maldades do unicórnio os atravessarão;
Despedaçados por completo, eles não se quebrarão.
E a morte não terá nenhum domínio.

E a morte não terá nenhum domínio.
Não mais irão gritar as gaivotas aos seus ouvidos
Nem se quebrar com fragor as ondas nas areias;
Onde uma flor desabrochou não poderá nenhuma outra
Erguer sua corola para as rajadas da chuva;
Ainda que estejam mortas e loucas, suas cabeças
Haverão de enterrar-se como pregos através das margaridas,
Irrompendo no sol até que o sol se ponha.
E a morte não terá nenhum domínio.


O Efêmero:

A Morte Absoluta (Manuel Bandeira)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

[Fragmento]

Ela olha-o como se olhasse a si mesma. O que ela vê então? Não sabe a distinção entre ela e o que ela vê dela, fora de si. Seu reflexo reflete a si num espelho que não o seu. Não sabe até que ponto ela é no outro. Sabe apenas que é bom. Dói. Mas é alegre. É um livrar o pé do sapato apertado.É poder mexer cada dedo deste pé que estava aprisionado. O outro. Ela viu a si no outro. Encontrou-se fora de si, louca que era. O encontro foi possível somente na loucura? Talvez. O que há de se ganhar na mais plena sanidade?Os loucos sabem. E ela sabe. Só que é grande demais pra reduzir à palavra esse saber que é vasto. Seu corpo dói de se contorcer, de tanta alegria que não cabe nela. Ela chora de rir tamanha é a dor. Ela conseguiu. Ela pode, enfim, dizer antes da morte chegar:"eu me encontrei". É ter a coragem dos suicidas ou mesmo das ondas do mar, que para ser onda, tem de se quebrare anular-se em espuma, apenas para ser. E ela é: "eu me encontrei"- ela disse.

Não: eu me encontrou-me.

Era o outro que a salvou do frio da morte.
Disse ela ao outro: eu te amo-me.

E assim eles foram. Até hoje e desde sempre, eles agora são É.

[Fragmento]

O amor que tu me deste era vidro e se quebrou. Não: o amor que eu lhe tinha era diamante. Raro, precioso. Como a pele virgem sendo tocada.Frágil como a vida. Qual o tamanho do amor que sentes por mim? Mece por si mesma. Vou pensar qual o tamanho do amor que sinto por ti. Não sei se consigo mensurar tal imensidão. Talvez seja de uma grandeza que não caiba em mim. Tentarei ousar: tu me amas? Pois, olhe, se não me amas... Não! nada. Não sei se sobreviveria à resposta. Bem, me entregarei agora a uma modesta ousadia: Eu te amo?: Eu te amo...: Eu te amo:: Eu te amo.

Eu te amo diamante. Com toda sua dureza e fragilidade. Fragilidade que ao ser quebrada, os pedaços não se refazem. Você pode cuidar do meu amor-diamante? Iria te pedir para cuidar de minha vida, minha alma; mas desisti, pois ela a mim pertence. Não posso morrer para ti. Morrer para quem amo. Não posso por em suas mão de éter o peso de meu diamante. Senão a culparia do que só eu tenho culpa.

Olhei-te sem que me notasse. Estava sob montes e sobre pontes vendo-a em deslumbramento. Amei-te. O brilho em mim se fez. Ao brilho, viu-me. Cativou-me. Cativei-te. Agora o que somos um ao outro, não sei. Só sei que somo-nos.

Strauss toca a valsa encantada e meus pés involuntários e incondicionais deslizam em seu chão. Onde está você que não dança comigo? Esta valsa está solitária. E nela tudo o que tenho é meu amor por ti. Que se amplia ao se adicionar saudade.

Fôssemos nós reflexos refletidos recíprocamente, dir-ter-ia: eu te amo-me. Mas não. Meu corpo é um espaço íntimo: eu te amo; minha alma é vasta:eu te amo.

Deves tu me amar? Não. Ame a ti mesmo. É o que faço: amo a mim mesmo para ter alguma força para poder te amar.

[Fragmento]

Até então, o máximo de mim era a pele. Os olhos estavam nos números, nos motores, nos concretos, estavam. E apenas os olhos faziam sua função de olhar. Fora da pele havia o tudo envolto. Um tudo-plástico. Um plástico que me deixava a pele oca. Uma bexiga com gás hélio voando aleatória ao nada. Sim, uma bexiga. Não, não havia o gás hélio. O vôo era um aleatório-nada rumo ao nada.

Num filme vi um homem que sobreviveu à guerra. Um ela o fez viver. Ele queria dar uma vida àquele ela. Uma vida fora dele. Aquele ela não tinha nada a não ser o seu de dentro. Sim, era uma vida. Sim, era o gás hélio. Sim, um olho-corpo-alma. Não, não havia o vôo. Talvez o destino.

Enchi-me de gás. Reneguei o de fora e entrei em meu para dentro. Sim, o gás virou água. Sim, pesou mais leve que o ar. Voei: voei para dentro e cai no infinito de mim.
Os olhos já não viam mais números, motores, concretos. Sim, eu via. “Um ela?” Um olho-corpo.


Não: renego a guerra!
“Um ela, sim?” Não.


Saio de dentro como um corpo tomado pela gravidade. Desculpe-me mim: olho: vejo números, motores concretos. Estou numa guerra dentro de mim.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Prelúdio de Uma Saudade

"eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram."
-Herberto Helder-


sentado à sua frente
(imaginando talvez que eu estivesse em algum céu impossível)
ouço
seus lábios se dilatarem e sou
cego.
chega até mim o seu
sorriso
e o sinto em todo o
corpo

o meu amanhece

:e antes
que meus lábios possam fazer qualquer coisa
antes
de viver,
a saudade de tocar o seu sorriso
que ainda não
nasceu
e o meu
espera

(como um cego espera o semáforo se abrir)-(em algum céu impossível)
sentado à sua frente.

Equilíbrio

um santo que não acreditava em Deus disse:

"a chave para o reino dos céus
está em nossos pés"

em coral unissono - por um instante -
os pés de todo o mundo abandonaram o chão:

a Terra saiu de seu eixo.