sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Buracos

I

há um buraco no calendário do tamanho da falta que sinto em mim. e não sei quem o que ou coisa alguma. o que me acontece é que quando olho para o calendário, vejo nele um buraco maior que a parede. e o buraco me espelha: está em mim. ontem de manhã, quando caminhava para distrair minha fome, uma criança me olhou nos olhos, bem no fundo dele e falou "mãe, você viu que homem esburacado?!""quieto menino, e fique longe dos poços." o buraco é tão grande que já está dando o que falar na rua! já não consigo esconder minha fome.

II

sabe, às vezes encontro alguns amigos que não os vejo há tempos e não consigo sentir mais o abraço deles. eles me abraçam e quando viro as costa eles estão ali, atrás de mim. olham-me constrangidos, desviam seus olhos dos meus, dizem de forma quase ilegível apenas "sinto muito", e do mesmo jeito que me atravessaram vão embora. as pessoas não sabem lidar muito bem com seus buracos...

III

conheci, dia desses, um homem curioso. profissão: poceiro. sim, ele faz poços. de início tive medo, não sabia que houvesse pessoas fazendo buracos pelo mundo afora. na ocasião em que o conheci, ele estava no fundo do poço. disse-me que se pudesse passaria horas ali. anos mais tarde, passo por este poço e penso: o homem vive agora como sempre quis, na sua hora eterna.

IV

"tatu não vê a lua" - e se visse com certeza não seria tatu: ele vive em buracos. tem fobia por qualquer claridade. dói-me a vista à exposição solar.

V

se eu resolvesse gritar, quem ouviria? li num livro de física que o som não se propaga no vácuo. e como gritar com um buraco desses pegado à vida? a gente se acostuma fácil às coisas. não me incomodo com o silêncio.

(lembro-me de ter lido em algum lugar, mas não lembro onde "e esse silêncio que não é mudez"...)

... desconfio que sinto saudades não sei de quê...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Navios

estava no cais. sempre estava. gostava de ver navios. há tempos havia tomado gosto por eles. não sabia quando começou. talvez muito antes de sua existência.

seus olhos grudavam no casco do navio, como as ferrugens em suas placas de metal. a própria ferrugem o fascinava. não se sabia a cor de seus olhos: se eram castanhos ou se foram tomados pelo encanto que tinham pela ferrugem.

a imensidão do navio. sua grandeza majestosa. o sol no poente, visto de trás do navio era pouco, perto de sua grandeza. o menino crescia junto.

crescia e se rendia à beleza do transatlântico.

todo os dias o menino ia de encontro ao navio, como o fígado Prometéico que se regenerava à águia faminta - como um amante obediente à sua amada.

mas o navio não se regeneraria após a partida. ao singrar à curva do horizonte, nunca mais voltaria àqueles olhos castanhos.

os olhos, ferrugem, sabiam muito bem: eram sol que se apresentava independente das nuvens que pudessem lhe cobrir a cidade, razão de seu brilho.