(na fonte do impossível, dentro de uma noite onde ando reluzente e não - me! - sei.)
quarta-feira, 3 de março de 2010
Uma noite
(na fonte do impossível, dentro de uma noite onde ando reluzente e não - me! - sei.)
sábado, 23 de janeiro de 2010
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Alhures (ou Uma tentativa de primeira nascença ou Elegia para 1201)
Eu estava sendo levado para um lugar que, como a poltrona, não me dizia respeito. Minha mãe olhava-me feliz, pensando que eu a acompanhava em sua peregrinação rumo à Basílica. Esse lugar, dentro de mim, era oco.
Somente minha mãe via-me identidade. Para todos os outros eu era um outro-que-não-aconteceu; um aborto que nunca se acabaria. Deixavam-me só com minha mãe, e quando se referiam a mim, dirigiam-se a ela, como se eu fosse um ser incapaz de comunicação. Um selvagem exposto numa jaula à curiosidade alheia.
Olhava janela afora e a paisagem sussurrava dentro de mim. Evocava-me, pedindo minha presença. Eu quase lhe nascia, mas o chamado não era páreo para as histórias polifônicas celebradas por minha mãe e seus frátrios. Irmãos na cristandade. Eu destoava, unigênito órfão, daquela confraria fraterna.
Quando o ônibus enfim chegou ao seu destino, imediatamente perguntei qual era o meu. Imaginava estar num lugar que de uma vez por todas não era o meu. Sentia-me numa terra estrangeira, num lugar onde não conseguia fazer caber meu corpo. Andava como se meu corpo fosse um pé doído, habitando um sapato de número menor.
Caminhávamos em direção à Basílica. O templo com sua imponência assustava-me a alma: era erguido apenas com tijolos empilhados um em cima do outro, com uma quantidade de cimento suficiente para ligá-los. Eu achava tudo isso pouco para toda sua grandeza. O templo me afrontava com a simplicidade de seu esplendor, coisa que me era almejada e ao mesmo tempo impossível. Nunca fui estruturado para grandezas.
Sentia-me reduzido naquele templo e havia perdido a noção de qualquer referência possível que me fizesse humano; tempo, espaço, outro... já não me diziam respeito. Minha atenção foi totalmente sugada pela vastidão dos tijolos empilhados, ao passo que, ao voltar em mim, dei-me conta de que já não estava mais com a equipe cristã que eu acompanhava. Meu único elo com aquele universo era ligado pela presença de minha mãe. Com essa cisão começava a sentir uma vertigem que me incomodava, mas não podia dizer que era ruim; sentia meu corpo em cada uma de suas partes e cada parte que eu mexia, tinha vida. Pensava que se essas partes quisessem, conseguiriam revoltar-se individualmente. Eram todas autônomas. A minha angústia agora consistia em saber o que fazer de um corpo vivo. Percebi que naquele momento aconteceu minha primeira nascença.
Sem minha mãe por perto ganhei a liberdade de ir para onde eu quisesse. E foi o que fiz. Quando saí da Basílica, vi um menino. Todos falavam dele, como os adultos falam das crianças, com uma ternura plástica, tati-bi-tatis. Porém, a criança estava em outro lugar que não era aquele. Sabia exatamente onde ela estava. Já a conhecia de outros tempos. Lembrei-me do que fui minha vida toda: um anônimo buscando seu lugar de nascimento. Imerso naquele desdém, de súbito ele me olha. Sonda meus olhos como se visse minha alma nua. Olhou-me e virou seu rosto para o alto da Basílica, para seu topo. Aquela profundidade me assustou e revelou-me a mim mesmo qual era o meu lugar. Corri sem olhar ao redor e quando menos percebi estava no alto do Templo. Dizia coisas ilegíveis, que ninguém entendia. Havia decifrado o enigma de meu idioma. Descobria as palavras que me diziam e que eu podia comungar com o mundo; descobri um modo de dizê-lo.
Eu já não entendia o outro idioma que me foi imposto. Havia gritos no templo do qual eu não sabia palavra. Estava extasiado com a balburdia que ali acontecia. Era a celebração de meu nascimento. O menino era o único silêncio abaixo de mim. Foi nele que me concentrei. Quando nossa comunhão foi absoluta, ele me sorriu. Entendi o seu chamado e me lancei ao seu encontro. Ele aprovou o que fiz; havia entendido seu silêncio. Durante a queda, entendi o lugar de onde eu era. Pertencia ao lugar onde nasci.
O parto fez-se completo.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
8406-4525 : Alô, Bukowski?
I get many phonecalls now.
They are all alike.
"are you Charles Bukowski,
the writer?"
"yes," I tell them.
and the tell me
that they understand my
writing,
and some of them are writers
or want to be writers
and they have dull and
horrible jobs
and they can't face the room
the apartment
the walls
that night -
they want somebody to talk
to,
and they can't believe
that I can't help them
that I don't know the words.
they can't believe
that often now
I double up in my room
grab my gut
and say
"Jesus Jesus Jesus, not
again!"
they can't believe
that the loveless people
the streets
the loneliness
the walls
are mine too.
and when I hang up the phone
they think I have held back my
secret.
I don't write out of
knowledge.
when the phone rings
I too would like to hear words
that might ease
some of this.
that's why my number's
listed.
462-0614
agora recebo muitas chamadas de telefone.
todas iguais.
"é Charles Bukowski,
o escritor?"
"sim," eu lhes respondo.
e eles dizem que entendem minha
escrita,
alguns deles são escritores
ou querem ser escritores
e estão em empregos estúpidos e
horríveis
e não conseguem nem encarar a sala
o apartamento
as paredes
essa noite...
querem alguém com quem possam
conversar,
não podem acreditar
que não posso ajudá-los
que não conheço as palavras.
não podem acreditar
que agora mesmo
me dobro em meu quarto
segurando minhas entranhas
e dizendo
"Jesus Jesus Jesus,
de novo não!"
eles não podem acreditar
que as pessoas mal-amadas
as ruas
a solidão
as paredes
também são minhas.
e quando desligo o telefone
eles acham que escondi o
jogo.
não escrevo a partir da sabedoria.
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma
dessas coisas.
é por isso que meu nome está na
lista.
quinta-feira, 12 de março de 2009
R.
a poesia que deixaste no mundo arde no peito de cada um que fica.
e a morte não significa mais um fim
: os sentidos - todos! - tornaram-se ruínas.
cada qual, aqui, a seu modo levanta, dos escombros,
entulhos que se transforme em algum signo incandescente.
mas o sentido não vem.
e existir torna-se absurdo,
e os lugares da memória - todos desabitados.
(habitar um corpo, nestas condições, é invivível)
enquanto procuramos dentro do fogo
o segredo dos signos,
celebramos tua existência dentro de um tempo ancestral.
todos, numa orgia pan-espacial
enlouquecemos de corpo
(como existir depois de ?)
terça-feira, 3 de março de 2009
- entre
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Verão
sua voz amputada de meus ouvidos. não mais gosto de ti quando calas: está de fato ausente. o sol rasga o céu tirando dele a noite. estou no claro e me sinto cego, sabe que não sei como me comportar na luz. aliás, estou no claro e com sono e sem pálpebras.
escondo-me em escombros em construção e destruo minha alma. ela está quente e derretendo. me acostumei (ou acostumou-me?) com a escuridão e o frio. quero entrar num freezer, mas estou claustrofotofóbico. a multidão de raios solares me deixou assim. estou sem jeito de ser. sem saída. tento o de dentro, mas não encontro. não o vejo na luz.
a luz me faz tua voz ser diferente. não a reconheço, mesmo se você me falasse diretamente ao ouvido. claro assim, sou surdo de ti. procuro agonizante tua voz numa multidão polifônica. e mesmo que a sua esteja, na luz ela tem outras propriedades; outros vocabulários, outras entonações, gírias, discursos... não te reconheço na luz.
penso-me agora incompatível a teu sangue, você que se sabe na claridade e eu, no escuro. (será que me reconheces na luz?)
algo está acontecendo neste lugar iluminado. ouço moedas caindo num recipiente metálico aos meus pés. uma multidão de vozes me cercam. talvez você esteja por perto, mas não sei se pode me salvar.
você me reconhece na luz?
algo está acontecendo. mas você não sabe do que se trata. ou sabe?
(o verão me engoliu o que eu poderia ter sido)
quinta-feira, 13 de março de 2008
Écrire
y-gosto de kandinski, miró.
x-gosto de magritte, picasso. caravaggio...
y-mas peraí: caravaggio é outra coisa.
x-não é não: são só nomes.
a máquina vai funcionando. entre uma preguiça e outra, a escrita vai se (trans)-formando. mais um rascunho que fica.
fim(-n-)da última postagem.
terça-feira, 4 de março de 2008
segunda-feira, 3 de março de 2008
Ponto Vazio
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
Solidão e Outras Modernidades
e se perdendo nos olhares dos outros passageiros, perdia-se de si. era essa sua solidão: acompanhada. emaranhada em outras tantas que não aguentam o espaço íntimo de seus corpos e querem transcender-se no outro. ela olhava à sua volta e imaginava as estórias por detrás desses olhares: neblina. nas outras estórias, queria encontrar a sua própria. que se perdeu e ela não sabe onde. não encontrava.
sons ensurdecedores. burburinhos de falas alheias, motores, máquinas e outras modernidades. ela não ouvia. os ruídos que a acometiam eram os seus. dentro. e a isolava do mundo de fora, assim como todos estavam isolados entre si. acorrentados em seus ruídos internos.
e que ousadia salvaria (se é que se possa chamar de salvação!) a dor dessa solidão que acometia a moça só em meio a massa humana que a cincundava? olhava pela janela e a visão de fora era vertiginosa. pessoas andavam emaranhadas e únicas. não existia nada além de seus caminhos - que não sabiam, de fato, se eram realmente seus (os umbigos eram seus universos.) olhava as pessoas no ônibus: sua visão escurecia. o ruídos internos ficavam insuportáveis. sua cabeça latejava. as pessoas fora dentro ela circulavam em sua mente, gritavam. enlouqueciam.
precisava salvar-se, salvar sua vida. precisava fazer algo e era urgente...
virou-se para o lado, sem olhar a quem, vomitou algo (talvez sua solidão):
-bom dia...
um sorriso alheio salvou-lhe a vida. a viagem seguiu sem mais ruídos.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Minha Mãe
fios brancos em seus cabelos desgrenhados. um sorriso insano na face. papadas e rugas e dentes postiços acendem sua velhice. um olhar cansado, disfarçando ainda quererem viver.
tentativas de iniciar uma conversa que acabou há anos-luz. um assunto que nunca começa, porque já foi terminado há muito. tentativas de me pôr numa família. eu que não sou familiar. você tenta bestamente. irrita-me com sua bondade-plástica. sei o real motivo: colocar-me num espaço que não é o meu. colocar-me sob seu domínio, debaixo de suas asas. coruja que já assassinei.
você chorou quando eu disse que ia sair de casa, eu que já não estava. eu que não pertencia àquele lugar. a sua casa. o seu mundo. você chorou, querendo que eu não fosse, eu que já havia partido e você sabia. chorou porque sabia. disse que eu não gostava de você, que não gostava de vocês, que vocês eram tudo o que eu tinha. e você sabia que mentia, sabia que eu sabia que você mentia para eu ficar. eu que já havia partido.
e o mundo era meu lugar, minha casa, enquanto eu não achava meu lugar, meu lar. pertenço aonde estou. e você odiava o mundo e falava de Deus e outros mundos inexistentes para mim, na tentativa de me fazer voltar ao seu, ao seu mundo que nunca pertenci, ao seu mundo que reneguei quando te assassinei como coisa hierárquica e te-me transformei em pessoa.
podíamos estarmo-nos presentes apenas no silêncio. mas para você era insuficiente, tinha de dizer nadas para irritar-me, invocando todo meu sarcasmo, meu silêncio irônico-fatalício.
você sabia que eu podia matá-la e você pedia isso, pedia-me para aniquilá-la, só para, depois, me fazer sentir culpa, ficar o resto de minha morte sob seu túmulo, devoto de uma santa de plástico, e você com seu sorriso camuflado em suas lágrimas.
não, eu não vou chorar, sequer sentir culpa. conheço seus truques e estratagemas para me fazer ficar. eu que já parti e sabes disso. e é o ódio que sentimos - eu, do seu amor-plástico e você do mundo-meu-que-me-ganhou - que nos aproxima. nos faz cúmplices de um segredo-nosso. de um amor que não aceitamos e temos. o meu, de assassiná-la e o seu de me querer em seu mundo. e nosso amor é o maior de todos. um amor que nasceu desde sempre. um amor que não entendemos e que nos mata um para o outro. um amor que faz com que nos suicidamos para você-eu. esse amor demente, insano. que nos faz duvidar. que não sabemos.
e simplesmente existe. independente de não existirmos.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
E Ele me Leu...
"O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece."
Borges e Eu
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
sábado, 16 de fevereiro de 2008
Exercício*
Olha só aquela racha, tá se achando. Olha lá, vê só como ela ri, precisa desse escândalo todo?! E por falar nisso, olha o decote... não!, dá para ver até o umbigo. E ela se inclina toda pra falar com ele... hum. Vou ficar quieta. Ah não!, me descupa, mas não dá! Você viu? Precisa pegar na perna do bofe pra falar? Olha vou ser sincera: eu nem gosto que me toque! O quê? mas o Augusto era meu namorado, é diferente. Ah é? Namorado dela? Outro, né?!, porque é um por semana. Já faz seis anos?! Ah, não sei, só sei que semana passada vi ela com outro... e olha, é de tudo quanto é idade, viu?! Tava com um bofe... já era um senhor! Foi sim, foi depois do almoço. Ah não?! o pai dela? Tudo bem, mas com esse vestidinho, não sei, não, boa coisa não é. Conheço esse tipo. Olha lá, falei, viu ela descruzando as pernas?! Deu pra ver até o útero. Aposto que tá sem calcinha. É... deixa pra lá, a vida é dela, não tenho nada a ver com isso. Eu não queria falar nada não, mas ele só deve estar com ela pra ir pra cama. Como não?, você acha, vulgarzinha desse jeito?! E esse cabelo... tá parecendo uma puta. Ah, mas não é verdade? Tereza... Tereza... olha lá, ela tá vindo. Péssimo gosto, que cabelo. Tereza, fica quieta.
-Oi Fofa, tudo bem?, você conhece a Tereza, minha amiga? Ah, o namorado! Não, noivos?! Olha que graça Tereza, que bonitinhos. Então passa lá no salão que eu tenho umas coisas pra te mostrar. Que isso, eu é que sinto um enorme prazer em poder mexer nesse cabelo maravilhoso! Tá bom, tchau, hein... bye, bye, linda...
Hum, noivos. Vaca... ai que ódio, ainda por cima ela me chamou de Jorge, eu já falei pra ela que é Salete, SA-LE-TE... Ah, vambora, Tereza, qu'eu já tô passada.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
Canto Fúnebre
Em algum momento em sua vida fez parte de um círculo social onde era chamado de amigo. Ele não se lembra bem, e hoje não sabe e nem imagina o significado dessa palavra. Nem pensa nisso. Simplesmente não pensa. Seus olhos ficam vidrados, ávidos, num ponto vazio no espaço, que facilmente acredita-se que ele avista o chão.
Chão. Foi ele.
Sua boca adormecida era uma casa abandonada onde reinara o silêncio. Saia delas apenas heras decrescentes de líquido transparente e viscoso.
Amigos. Se ele tivesse consciência do que era essa palavra – hoje inexistente a si – chamá-la-ia de ausência. Sua única companheira.
O que é homem, quando sua única posse é o corpo? Antes, quando tinha algo além, era cercado de outros corpos que o simpatizavam. Ele até chegou a acreditar na palavra amizade. Não, mais que isso: era uma família que ele possuía. Fora e dentro de sua casa.
Mas agora, mudo, que palavra lhe salvaria? Ausência. Alguém em plena sanidade não arriscaria chama-la de palavra. Guarda-se ela muda dentro de si. Ausên... Ele, que já não pensava, teve a ousadia e coragem de conviver com essa in-palavra. Pois com ela não se escolhe o convívio. Acontece.
Quantos corpos passaram por sua vida. Quantas vidas compartilhadas. Solidões acompanhadas. Agora sem companhia nenhuma. Sua solidão à mercê da ausência. Na derrelição, no abandono. Num canto que não lhe pertencia. Seu último abraço foi dado a um chão. Como um beijo na boca. Um encontro precipitado há anos, desde o primeiro beijo naquela ardência de líquido transparente. Este não era viscoso.
O beijo da morte. O chão. Foi ele.
Tirou-lhe todos os corpos de sua vida. O que é o homem, quando sua única posse é o corpo? E o que é o homem, quando nem seu corpo lhe pertence?
Uma fresta. Um espaço vazio entre o guarda roupa e a parede.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Brasileira Preta
8 p.m.
espero o ônibus. atrasa mais que o normal. mesmo indo a alguns pontos antes, o pego lotado. tenho um livro às mãos. tentarei o milagre de lê-lo durante a viagem. próximo ponto: mais pessoas entram onde não cabe mais ninguém (generosidade seria isso: dar espaço ao outro onde não mais têm?) mochila nas costas, mão no ferro e na outra o livro. as pessoas passam. e quase me levam. respiro fundo e mantenho a atenção no livro (ou tento...) alguns passam para onde já não tem mais espaço. e tentam me levar. quando não eu, minha mochila. outros param. e se escoram em mim. tento me esquivar, mas inútil. paro a leitura: 1x0 pra galera do ônibus. tento me distrair com a paisagem externa concretacinzentada. o homem ainda escora em mim. (acho que agora intuo o que Clarah queria dizer com "brasileira preta" - woman is the nigger of the world.) a viagem é conturbada. mesmo com mais espaço, as pessoas ainda tentam me levar. desço do ônibus com pernas e braços doendo (academia pra quê?) vou ao trabalho. nada. vou ao banco. nada ainda. não sei mais aonde ir... nada... volto pra casa depois de tanto protelar em algo já dado: não há pra onde correr.
pois é, Rimbaud: ao me foder, nem era meio-dia.
P.S.: o livro que eu lia se chama: "É isto um homem?".
qualquer coincidência é mera semelhança.
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
Chuva
chove na cidade.
na cidade que já é parada, algumas gotas vindas do céu me páram; mais ainda. estátua. as gotas me petrificam em frente a tv e não faço idéia do que elas me dizem, a tv, a cidade, a chuva...
durmo.
sonho. e no sonho chove. não faço distinção entre dormir e manter-me acordado. em ambos os casos chove. e o que fazer? fazer algo mudaria o tempo? círculo de sal em frente a porta não adianta. nada adianta.
ouço o som da chuva, as gotas batendo no telhado. ouço o sussurro da tv. já não ouço. ao meu redor o silêncio do mundo. e o meu: de estátua.
na cidade, apenas os prédios enfrentam a chuva. enfrentam implacáveis, sem poder de escolha. paro em frente ao prédio e ele me intimida. não tenho sua coragem. me resta apenas dormir numa casa que não é minha. sob a chuva, sonhando com uma chuva que não sei onde acontece.
ela acontece, talvez, em mim.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
A Janela
Atrás dela, ele e a porta: semicerrada.
Ela, em alguns instantes, num átimo de esquecimento, imagina-o olhando-na; talvez ele ainda a desejasse, pensava. Sentia-o vindo em sua direção, os braços dele envolvendo os seus. A miragem se desfazia; outra vez a imagem além-janela.
Atrás desta imagem estaria, talvez, a cidade. Ele costumava caminhar com ela pelas ruas, até que encontrasse um lugar "que eram os dois", ele dizia. Ela nunca gostava do lugar escolhido, mas também não se importava, ele estava ali. Agora, os lugares habitavam o esquecimento.
As mãos dele no ombro dela; desciam até ficar mãos nas mãos. Um leve suspiro dela. Enganara-se: lembrou-se do eterno ritual da despedida. Novamente a janela. Ela que lhe dava sempre a última lembrança dele, assim que ouvia a porta se fechar. Último enquadramento antes do próximo depois.
Mas ela já estava à janela. A porta nem sequer lhe anunciou. Olhava algo além da janela: talvez estivesse revisitando sua memória. A janela diante de si, a porta atrás: cerrada. Na sala, somente ela.
Uma gota tocava seu rosto. "Acho que vai chover", pensou. E fechou a janela.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2008
E os Grilos Cantavam
E os grilos cantavam.
Ou talvez fosse apenas o som de nossas cabeças, após uma explosão de ruídos, repentinamente deparar-se com o vácuo do silêncio.
À nossa frente, o manto azul enegrecido que veste a noite. Manto que nos faz ver cada olhar solto no céu: a luz de cada estrela. O manto estava esplêndido. Seu esplendor levava qualquer olhar ao céu, tal como a gravidade trazia qualquer corpo ao chão.
A noite respirava com exaustão. Seu ar, solto como algo vivo, percutia onde pudesse ressoar sons: folhas de árvores, telhados, carros, poeiras...uivos. Queria ser ouvida de qualquer forma, como um viajante solitário no deserto. Daí, então, seus uivos.
A noite era uma linda dama solitária.
Em meio ao manto, em algum ponto do manto, vozes sussurravam aleatórias.Premeditavam o adormecer. Vozes sonolentas. Divagavam entre silêncio e outro. Sempre o silêncio. Solto aos sons silenciosos do vento, das folhas, uivos. Sons etéreos. Sons silenciosos.
Havia a cumplicidade de dois criminosos que infrigiram a humanidade. Não se arrependem. Não vão se render. Era o amor recíproco: aquele amor de quem ama a luz do sol; aquele de quem ama o verde das folhas; o vai evem das ondas. O amor de duas crianças que brincam na lama sem culpa.
As vozes eram trocadas pelos corpos como cartas em caixas de correio. Não havia a pretensão da resposta. Não havia o tédio da espera. É que o tempo se ausentara e o espaço já não mais importava.. O vôo foi alçado. Juntamente às vozes evasivas, aleatórias. Alçaram vôo como fumaça buscando a imensidão do céu, numa dança suave e lenta.
Entre as vozes que se alternavam, o silêncio era cada vez maior.Esses intervalos de silêncio minimalista pesavam as pálpebras. Os olhos estavam em chamas. Pediam ao sono, a escuridão. As palavras já não eram tão legíveis. Os olhos já não suportavam mais o peso da música silenciosa: do vento que percute, da dama que uiva, do grilo que canta sob o manto escuro com olhar de estrela.
- Os grilos cantam?- indagaram as vozes quase ilegíveis. As pálpebras cederam. O sono mergulhou na negritude do inconsciente.
E os grilos cantavam.