terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Alhures (ou Uma tentativa de primeira nascença ou Elegia para 1201)

A poltrona do ônibus me era desconfortável. Meu corpo não cabia nela. Ajeitava-me de todo o jeito e forma. Tentativas vãs. E não porque meu corpo fosse vasto para tão parco espaço: era exatamente o contrário. Possuía uma liberdade desértica (e para que essa liberdade?).

Eu estava sendo levado para um lugar que, como a poltrona, não me dizia respeito. Minha mãe olhava-me feliz, pensando que eu a acompanhava em sua peregrinação rumo à Basílica. Esse lugar, dentro de mim, era oco.

Somente minha mãe via-me identidade. Para todos os outros eu era um outro-que-não-aconteceu; um aborto que nunca se acabaria. Deixavam-me só com minha mãe, e quando se referiam a mim, dirigiam-se a ela, como se eu fosse um ser incapaz de comunicação. Um selvagem exposto numa jaula à curiosidade alheia.

Olhava janela afora e a paisagem sussurrava dentro de mim. Evocava-me, pedindo minha presença. Eu quase lhe nascia, mas o chamado não era páreo para as histórias polifônicas celebradas por minha mãe e seus frátrios. Irmãos na cristandade. Eu destoava, unigênito órfão, daquela confraria fraterna.

Quando o ônibus enfim chegou ao seu destino, imediatamente perguntei qual era o meu. Imaginava estar num lugar que de uma vez por todas não era o meu. Sentia-me numa terra estrangeira, num lugar onde não conseguia fazer caber meu corpo. Andava como se meu corpo fosse um pé doído, habitando um sapato de número menor.

Caminhávamos em direção à Basílica. O templo com sua imponência assustava-me a alma: era erguido apenas com tijolos empilhados um em cima do outro, com uma quantidade de cimento suficiente para ligá-los. Eu achava tudo isso pouco para toda sua grandeza. O templo me afrontava com a simplicidade de seu esplendor, coisa que me era almejada e ao mesmo tempo impossível. Nunca fui estruturado para grandezas.

Sentia-me reduzido naquele templo e havia perdido a noção de qualquer referência possível que me fizesse humano; tempo, espaço, outro... já não me diziam respeito. Minha atenção foi totalmente sugada pela vastidão dos tijolos empilhados, ao passo que, ao voltar em mim, dei-me conta de que já não estava mais com a equipe cristã que eu acompanhava. Meu único elo com aquele universo era ligado pela presença de minha mãe. Com essa cisão começava a sentir uma vertigem que me incomodava, mas não podia dizer que era ruim; sentia meu corpo em cada uma de suas partes e cada parte que eu mexia, tinha vida. Pensava que se essas partes quisessem, conseguiriam revoltar-se individualmente. Eram todas autônomas. A minha angústia agora consistia em saber o que fazer de um corpo vivo. Percebi que naquele momento aconteceu minha primeira nascença.

Sem minha mãe por perto ganhei a liberdade de ir para onde eu quisesse. E foi o que fiz. Quando saí da Basílica, vi um menino. Todos falavam dele, como os adultos falam das crianças, com uma ternura plástica, tati-bi-tatis. Porém, a criança estava em outro lugar que não era aquele. Sabia exatamente onde ela estava. Já a conhecia de outros tempos. Lembrei-me do que fui minha vida toda: um anônimo buscando seu lugar de nascimento. Imerso naquele desdém, de súbito ele me olha. Sonda meus olhos como se visse minha alma nua. Olhou-me e virou seu rosto para o alto da Basílica, para seu topo. Aquela profundidade me assustou e revelou-me a mim mesmo qual era o meu lugar. Corri sem olhar ao redor e quando menos percebi estava no alto do Templo. Dizia coisas ilegíveis, que ninguém entendia. Havia decifrado o enigma de meu idioma. Descobria as palavras que me diziam e que eu podia comungar com o mundo; descobri um modo de dizê-lo.

Eu já não entendia o outro idioma que me foi imposto. Havia gritos no templo do qual eu não sabia palavra. Estava extasiado com a balburdia que ali acontecia. Era a celebração de meu nascimento. O menino era o único silêncio abaixo de mim. Foi nele que me concentrei. Quando nossa comunhão foi absoluta, ele me sorriu. Entendi o seu chamado e me lancei ao seu encontro. Ele aprovou o que fiz; havia entendido seu silêncio. Durante a queda, entendi o lugar de onde eu era. Pertencia ao lugar onde nasci.

O parto fez-se completo.

4 comentários:

Suelen Maria Rocha disse...

Quero a continuação dessa história.
Merece uma publicação! Quem sabe este não seja o primeiro capítulo de seu primeiro romance...
Quero mais!

Bisous

-E2R- disse...

Como sempre...Muito bom! Você me surpreende cada vez mais. Acho lindo como vc diz as coisas sem dizê-las de fato e como as coisas mudam quando vc escreve, o que para mtos seria um desastre inexplicavel, para o menino foi sua vida! So vc conseguiria ver isso deste modo...simplesmente encantador...

Bjs, E.

Danúbia Ivanoff disse...

o menino e o homem suicida.. as origens, tradições.. gente! que loucura foi ler este micro conto,até lembrei do de Mello Neto..rsrs

Mayara Novais disse...

Parábens!Seu texto é ótimo!!
Dá vontade de continuar lendo e não parar mais...É mto bom!!