quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Partida

a velha queria ir ao aeroporto ver aviões partir. sonhou com um enorme, grande, na noite anterior àquela que descobriu ter um sonho. não sabia como eram os aeroportos. e a pouco descobriu como era ter um sonho (se não lhe fosse impossível, se pudesse sonhar um pouco mais, desejaria um aeroporto só para ela).

tinha como sua única posse pedaços de trapo pendurados sobre um corpo magro e encardido, que lhe escondia qualquer possibilidade de sensualidade, e um saco plástico com um cartão postal dentro, que ela achou na rua. nele, palavras que seu pouco vocabulário nunca conheceria: par avion. mas a imagem era linda, apesar dela não saber do que se trata - e, também, muitas pessoas dizem saber, mas por constrangimento. em silêncio, ela apenas assumia sua ignorância.

sempre que ouvia um avião, dizia que Deus lhe falava. ela que não sabia sequer dizer: Deus. um sorriso penso na sua boca banguela parecia entender. seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre.

ela não morava. sua casa era seu farrapo. seu corpo esquelético. ela talvez fosse o único ser na terra que podia dizer “sou-me”. em sua miséria, ela tinha a maior das posses. e ainda sim, ter o luxo de possuir um sonho. ver aviões partir.
seu sonho tornou-se obsessão. começou a segui-los, mesmo estes sendo-lhes impossíveis. era vê-los e ir até eles. de avião em avião, chegou ao tão sonhado aeroporto (o sonho acabara-lhe de ser o sonho num sonho).

seus olhos de tão abertos, pareciam tocar os aviões, mesmo eles a metros longos de distância. começou então, como numa espécie de ritual, a dançar, mexendo seus ossos quase descarnados, descoordenadamente, sem muita ordem. como sempre foi sua vida.

sem saber como, talvez pela movimentação ritualística involuntária, chegou na pista dos aviões. ela se extasiava com a dimensão de mundo que nunca teve para si. um espaço que enfim cabia teu parco corpo. um espaço do tamanho do ser que era ela.

a voz de deus lhe soou mais alta que o normal. ele agora lhe falava dentro. ela fecha os olhos. tremendo seus órgãos de pássaro natimorto, ela abre os olhos. seu sonho vinha para abraçar-lhe. tudo o que ela podia fazer era retribuir-lhe. foi de encontro a ele. fechou os olhos.

pela primeira vez em sua vida pode ver, ter e ser seu sonho: um avião de partida.

(um cartão é encontrado solto na pista. lia-se: par avion)

3 comentários:

david santos disse...

Olá, povo brasileiro!
Hoje você vai votar.
Vota bem, vota certeiro,
Se não quer vir a chorar,
Por votar no mais matreiro.

-E2R- disse...

"seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre."
Amei esse trecho. Sua "mulher" voou no meio do seu jeito de escrever! mais uma vez, encantada!!
Ps: atendendo seu pedido, publiquei...
Mandei alguns textos da minha irmã pro seu email!!
bjs,
E!

Suelen Maria Rocha disse...

Eu diria que é uma reescritura do último capítulo da "A Hora da Estrela". A mulher do seu "conto" é uma espécie de Macabéia.
Ela realizou o sonho "par avion"!
Adorei. A leitura é fluente e impressionante.

Beijos par avion