sábado, 23 de janeiro de 2010

Sem nome


cometa de muda incandescência, sou um risco obscuro dentro da noite. nos lugares onde brilhei, os nomes recebidos no instante de minha aparição, não quer dizer senão que não me viram.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Alhures (ou Uma tentativa de primeira nascença ou Elegia para 1201)

A poltrona do ônibus me era desconfortável. Meu corpo não cabia nela. Ajeitava-me de todo o jeito e forma. Tentativas vãs. E não porque meu corpo fosse vasto para tão parco espaço: era exatamente o contrário. Possuía uma liberdade desértica (e para que essa liberdade?).

Eu estava sendo levado para um lugar que, como a poltrona, não me dizia respeito. Minha mãe olhava-me feliz, pensando que eu a acompanhava em sua peregrinação rumo à Basílica. Esse lugar, dentro de mim, era oco.

Somente minha mãe via-me identidade. Para todos os outros eu era um outro-que-não-aconteceu; um aborto que nunca se acabaria. Deixavam-me só com minha mãe, e quando se referiam a mim, dirigiam-se a ela, como se eu fosse um ser incapaz de comunicação. Um selvagem exposto numa jaula à curiosidade alheia.

Olhava janela afora e a paisagem sussurrava dentro de mim. Evocava-me, pedindo minha presença. Eu quase lhe nascia, mas o chamado não era páreo para as histórias polifônicas celebradas por minha mãe e seus frátrios. Irmãos na cristandade. Eu destoava, unigênito órfão, daquela confraria fraterna.

Quando o ônibus enfim chegou ao seu destino, imediatamente perguntei qual era o meu. Imaginava estar num lugar que de uma vez por todas não era o meu. Sentia-me numa terra estrangeira, num lugar onde não conseguia fazer caber meu corpo. Andava como se meu corpo fosse um pé doído, habitando um sapato de número menor.

Caminhávamos em direção à Basílica. O templo com sua imponência assustava-me a alma: era erguido apenas com tijolos empilhados um em cima do outro, com uma quantidade de cimento suficiente para ligá-los. Eu achava tudo isso pouco para toda sua grandeza. O templo me afrontava com a simplicidade de seu esplendor, coisa que me era almejada e ao mesmo tempo impossível. Nunca fui estruturado para grandezas.

Sentia-me reduzido naquele templo e havia perdido a noção de qualquer referência possível que me fizesse humano; tempo, espaço, outro... já não me diziam respeito. Minha atenção foi totalmente sugada pela vastidão dos tijolos empilhados, ao passo que, ao voltar em mim, dei-me conta de que já não estava mais com a equipe cristã que eu acompanhava. Meu único elo com aquele universo era ligado pela presença de minha mãe. Com essa cisão começava a sentir uma vertigem que me incomodava, mas não podia dizer que era ruim; sentia meu corpo em cada uma de suas partes e cada parte que eu mexia, tinha vida. Pensava que se essas partes quisessem, conseguiriam revoltar-se individualmente. Eram todas autônomas. A minha angústia agora consistia em saber o que fazer de um corpo vivo. Percebi que naquele momento aconteceu minha primeira nascença.

Sem minha mãe por perto ganhei a liberdade de ir para onde eu quisesse. E foi o que fiz. Quando saí da Basílica, vi um menino. Todos falavam dele, como os adultos falam das crianças, com uma ternura plástica, tati-bi-tatis. Porém, a criança estava em outro lugar que não era aquele. Sabia exatamente onde ela estava. Já a conhecia de outros tempos. Lembrei-me do que fui minha vida toda: um anônimo buscando seu lugar de nascimento. Imerso naquele desdém, de súbito ele me olha. Sonda meus olhos como se visse minha alma nua. Olhou-me e virou seu rosto para o alto da Basílica, para seu topo. Aquela profundidade me assustou e revelou-me a mim mesmo qual era o meu lugar. Corri sem olhar ao redor e quando menos percebi estava no alto do Templo. Dizia coisas ilegíveis, que ninguém entendia. Havia decifrado o enigma de meu idioma. Descobria as palavras que me diziam e que eu podia comungar com o mundo; descobri um modo de dizê-lo.

Eu já não entendia o outro idioma que me foi imposto. Havia gritos no templo do qual eu não sabia palavra. Estava extasiado com a balburdia que ali acontecia. Era a celebração de meu nascimento. O menino era o único silêncio abaixo de mim. Foi nele que me concentrei. Quando nossa comunhão foi absoluta, ele me sorriu. Entendi o seu chamado e me lancei ao seu encontro. Ele aprovou o que fiz; havia entendido seu silêncio. Durante a queda, entendi o lugar de onde eu era. Pertencia ao lugar onde nasci.

O parto fez-se completo.