sexta-feira, 25 de julho de 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

Desejo

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

(Herberto Helder)

domingo, 20 de julho de 2008

Amor

era uma vez não sei o quê.

um homem, um animal, em ser , um ente.

:um assassino.

e também eu.

ele carregava diversas mortes, como se a própria a tivesse encarnado.

(ele não me disse palavra, mas conheço esse olhar por ancestralidade)

nessa vez - foi única,fulminante, fulgás - era como se Deus se inclinasse para tocar o humano e assim formarem o infinito - nossos olhos se espelharam.

e estavam fechados - amor de cego.

o silêncio de um mergulho - amor de surdo-mudo.

o que falavam-se eram corpos.

o olhar assassínio me era um tiro na nuca, eu de frente. um tiro nele.

espalharam-se todas as nossas crianças, mulheres, amores, flores - mortos. corpos de vísceras.

uma mão me espreme o estômago: a dele; seu estômago quer fugir tudo dentro. mas, o assassino.

era uma vez - num átimo de eternidade

: eu

(sim)

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Elefante Vermelho

movimentos de cabeças de fora das portas para a rua. eu na rua: semi distraído; acordado pela discrepância dos habitantes daquela rua que iria dar para o que me paralisa. palavras ilegíveis me violentam o ouvido. todas ao mesmo tempo tentam invadir minha audição, que não dá conta de tantos alfabetos.

uma palavra me invade o tímpano e percute e faz eco na memória: morreu.
(meu Deus, quem a essa hora do dia, podia me por em lugar tão obscuro, de onde eu ocupava exatamente o extremo oposto?)

sigo. não: vou com minhas pernas, que caminham incertas, rumo a não sei onde. meu corpo sofre os espasmos da não concordâcia entre as lateralidades. eu não sei pra onde ir.

minha visão é assaltada pelo cruzamento. pelo que havia nele. vejo: um carrinho majestoso ocupando solitário todo o cruzamento. cacto do deserto. o vejo imponente como um prédio que me interpela. como um prédio que me faz girassol.

ele estava ali, solitário, verde folhas sobre rodas. vazio. silencioso.

não era mudez. a palavra gritava em minha cabeça, tirava minha paz. morreu. morreu.

chego à esquina do cruzamento. cabeças antecedem corpos, olhando na direção oposta à minha, n'outro extremo. a minha é atraída. uma multidão que se anulava em sua cor ocre. destacada apenas por um elefante vermelho, luminoso. ele era barulhento, o elefante. magnético. todos eram atraídos por seu imã. eram seus súditos.

mesmo outros veículos de passagem diminuiam um pouco a velocidade para poder se curvar diante o grande elefante. deviam-lhe referências. meu olhar era fuga e queda. perplexo. pedra viva.

num átimo, a palavra cedeu espaço a outro pensamento: no meio da multidão há um anônimo. a ele se deve a visita do grande elefante. a ele se deve o espetáculo.

foi afastado de seu companheiro que o espera - paciente - no cruzamento. espera como todos os dias acontecem. espera seu alimento. espera ser preenchido, carregado. desbravador.

desbravadores os dois. o companheiro demora mais que o normal. não sabe que ele não voltará nunca mais. que será levado pelo grande elefante vermelho. e ele, paciente, carregado por mãos insensíveis, desconhecidas. que não sabe nada dele. que não o alimentarão.

um paciente, o que ele é. um paciente e um anônimo. que não voltarão a se encontrar. nunca mais.

ele morreu.

(padeço)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Ode Descontínua e Remota Para Flauta e Oboé

I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


(Hilda Hilst, IN Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Corpo

e então, tornou-se algo vivo. naquele momento, quando a música percorria artérias, e se fazia glóbulos, moveram-se chãos e o abismo se fez. os pés andavam sobre nada; as mãos tentavam tocar o infinito; o corpo todo tentava abraçar os céus. a cabeça deixava-se levar.

um glóbulo cilíndrico percorria o corpo dentro. movia a ponta dos dedos que precedia o toque. percorria o olho antes que este pudesse mundo. percorria cada osso carne nervo veia néfrons: sinapses de êxtase.

uma alegria rompante arrebata cada mímimo de célula. cada célula podia, enfim, dizer: eu.

movimentos frenéticos: a música acelerava, as palavras tomavam o corpo e dele faziam movimento. tomavam dentro e movia fora. dolores: uma insuportável dor de parto tomava o corpo. (explosão) - (arrebatamento): profanos.

garganta seca; respiração arfante; articulações frágeis. e uma difícil alegria.

insuportável.

o corpo diminuía. queria tomá-lo a alegria, ela querendo se fazer corpo. e estava prestes a arrebentá-lo. estava prestes ao rebento, o corpo. uma estrela de mil pontas.

leveza de calvino: o corpo padece. vida.

a garganta não se sabe seca. a fadiga está aquém do corpo. movimento puro. pluma flutuando no infinito.

estado nascente: um corpo amanhece.

uma alegria. difícil.