quarta-feira, 2 de abril de 2008

J.H.


"o sertão é o mundo."

"o senhor tolere, isso é o sertão."

(João Guimarães Rosa)

“Era um pedaço de carne, já sem roupa, destruído. Mas eu sabia que era uma criança."
(Sgt. Sérgio Navega)


mas é justamente em minha tolerância que escrevo.

você, anjo no asfalto, seguro, preso em seu cinto. protegido. sem nada o que pudesse te tirar dessa proteção. sem nada que o ameaçasse e o fizesse voar. mesmo sendo um anjo. você com seis anos, com papai mamãe e família. e o mundo ao redor.

o mundo, anjo, não é só papai e mamãe e família, tem o homem bo/m/au. mas você não sabe. não teve a chance de saber. no carro a passeio, uns homens entram no carro do papai e pedem para sair todo mundo. todo mundo corre assustado, anjo, e você não podia protegê-los. mas estava bem protegido com seu cinto, e nada - nada!- o tiraria de sua bolha protetora. mamãe até que tentou, mas um dos homens estava bravo e com bastante pressa.

daí, meu anjo, o homem saiu rápido com o carro do papai, sem que a mamãe pudesse lhe retirar. e você preso em seu cinto "coloque o cinto, filhinho, senão pode se machucar". e você, anjo, colocou. e se machucou, e muito. e nada te tiraria dali, mesmo que um homem correndo com o carro do papai te deixasse pendurado pelo cinto, tendo seu corpinho de criança consumido pelo asfalto durante um dois três sete oito dez doze treze quatorze... quinze minutos.

e você não sabia o que acontecia, a cada quilômetro percorrido aumentava o número de pessoas na rua, e gritavam para que os homens parassem o carro do papai e você não sabia o porquê, você preso no cinto se corroendo pelo asfalto, se batendo na roda do carro que rodava, pintando a rua com seu sangue vermelho. você, anjo, se esvaia do mundo, ia para onde vão os anjos.

nem que você fosse gato, anjo, que possui sete vidas (você sabia?), não conseguiria viver: sua vida foi ficando, uma a uma, à cada quilômetro que percorria, a cada quilômetro seu corpinho diminuía. (e nem deu tempo de saber quantas vidas tinha o gato e quantos segredos têm o mundo. nem soube que as pessoas não eram só papai mamãe e família.)

acabou seu sopro.

um moço te retratou bem: ele sabia que você era pequenininho, apesar de estar olhando para um pedaço de carne, destruído. sabia que falaram de você na televisão? um monte de gente chorando, todo mundo falava de você. uma revista até colocou uma foto sua bem grande na capa. e nela tinha uma frase bem grande, que até me deixou surpreso: ...NÃO VAMOS FAZER NADA?".

e não fizemos

: sua mãe se junta à outras mães pedindo justiça em silêncio. as pessoas que te viram e choraram, já estão rindo com outras coisas que você não conheceu e não teria a menor importância se não conhecesse. são pequenas para ti, meu anjo. a televisão é um circo de divindades. aquela revista que colocou sua foto bem grande mentiu. ela também não fez nada.

hoje nem sei se lembram do seu nome ou o que te aconteceu. dizem que anjos têm que morrer para virar homem. e você, anjo, fez o caminho contrário: deixou sua alma no asfalto para se tornar um anjo indigente.

nesse espaço anônimo, anjo, deixo registrado o lembrete para que todos os homens nunca se esqueçam do que te ocorreu. nunca esqueça as suas marcas deixadas em algum asfalto em algum lugar desse mundo indigente naquela quarta feira de fevereiro, dia 02, no ano de 2007.

a você João Hélio Fenrandes, deixo aqui seu/meu sangue. a marca que deixaste no asfalto.

todos somos culpados.

(outro anjo morre, jogado do sexto andar)..... continua ( )

2 comentários:

Nátaly disse...

Como comentar um texto desses, que te deixa sem palavras? Não sobra nada para utilizar aqui. Nem moral, porque participo daqueles que não fazem nada.
Sem palavras, sem vida..
Lindo texto.

Rarefeita Perfeita disse...

Só lamento, pois a única contribuição que posso dar no momento é só o lamento, pois como já disseram eu também faço parte do silêncio...Ótimo texto....beijos