sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Minha Mãe

para minha Mãe


fios brancos em seus cabelos desgrenhados. um sorriso insano na face. papadas e rugas e dentes postiços acendem sua velhice. um olhar cansado, disfarçando ainda quererem viver.
tentativas de iniciar uma conversa que acabou há anos-luz. um assunto que nunca começa, porque já foi terminado há muito. tentativas de me pôr numa família. eu que não sou familiar. você tenta bestamente. irrita-me com sua bondade-plástica. sei o real motivo: colocar-me num espaço que não é o meu. colocar-me sob seu domínio, debaixo de suas asas. coruja que já assassinei.
você chorou quando eu disse que ia sair de casa, eu que já não estava. eu que não pertencia àquele lugar. a sua casa. o seu mundo. você chorou, querendo que eu não fosse, eu que já havia partido e você sabia. chorou porque sabia. disse que eu não gostava de você, que não gostava de vocês, que vocês eram tudo o que eu tinha. e você sabia que mentia, sabia que eu sabia que você mentia para eu ficar. eu que já havia partido.
e o mundo era meu lugar, minha casa, enquanto eu não achava meu lugar, meu lar. pertenço aonde estou. e você odiava o mundo e falava de Deus e outros mundos inexistentes para mim, na tentativa de me fazer voltar ao seu, ao seu mundo que nunca pertenci, ao seu mundo que reneguei quando te assassinei como coisa hierárquica e te-me transformei em pessoa.
podíamos estarmo-nos presentes apenas no silêncio. mas para você era insuficiente, tinha de dizer nadas para irritar-me, invocando todo meu sarcasmo, meu silêncio irônico-fatalício.
você sabia que eu podia matá-la e você pedia isso, pedia-me para aniquilá-la, só para, depois, me fazer sentir culpa, ficar o resto de minha morte sob seu túmulo, devoto de uma santa de plástico, e você com seu sorriso camuflado em suas lágrimas.
não, eu não vou chorar, sequer sentir culpa. conheço seus truques e estratagemas para me fazer ficar. eu que já parti e sabes disso. e é o ódio que sentimos - eu, do seu amor-plástico e você do mundo-meu-que-me-ganhou - que nos aproxima. nos faz cúmplices de um segredo-nosso. de um amor que não aceitamos e temos. o meu, de assassiná-la e o seu de me querer em seu mundo. e nosso amor é o maior de todos. um amor que nasceu desde sempre. um amor que não entendemos e que nos mata um para o outro. um amor que faz com que nos suicidamos para você-eu. esse amor demente, insano. que nos faz duvidar. que não sabemos.

e simplesmente existe. independente de não existirmos.

Um comentário:

Bárbara do Amaral disse...

Simplesmente lindo... profundo e tocante... amei!