Meu Deus, por que me abandonastes
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
(Carlos Drummond de Andrade)
d. está enlouquecendo.
diz que a força que possuia para manter sua sanidade está definhando. já faz algum tempo, vem cometendo alguns assassinatos. está cego. e o que é pior ainda: está surdo. justamente ele que era um apreciador da audição; está como que jogando pérolas aos porcos. está num autismo que não tem quem o tire. anda encurvado, de cabeça baixa, procurando um buraco no qual ele entrou há tempos e não sabe. se cobre (e se aquece) de uma solidão claustrofóbica. tomou gosto por ficar no quarto estreit'escuro. fica horas e horas olhando o escuro, até fazer parte dele. sim, ele conseguiu fazer-se invisível. inclusive para ele mesmo. não sente cansaço, não sente fome, não sente sono. mesmo o sono flamejando-lhe o olhar, evidenciando o óbvio. seu olhar é de ameixas secas. deu sua alma ao diabo: disse que não precisava mais dela e seria desnecessário vendê-la, ele que só quer o quarto estreit'escuro. não quer saber de amores e os que teve, fez questão de esquecer. acha que o amor é para quem tem competência e alguma disponibilidade para a vida. o que fez do que viveu? sua resposta foi o silêncio, a negritude que o apagou, o quarto estreit'escuro e um pouco de alienação. antes do quarto, costumava matar neurônios vendo programas religiosos e pornografias baratas. principalmente aquelas que esfregam cenas de sangue e assassinato explícitos na nossa cara. no começo foi difícil, mas depois até achou normal. e foi nessa mesma época que se convenceu de que deveria cometer o seu. acha que está morrendo um pouco por dia e que a qualquer momento chegará a hora fatal. d. está enlouquecendo. só não achei jeito para lhe dizer que ele já está morto.
peço vossa ajuda,
d.