terça-feira, 8 de março de 2016

Felicidade

esta noite eu tive um sonho

seu corpo saia do meu
como uma cadela ressurrecta

saia de mim como um rabo
feliz em minha inocência canina

saia como quatro patas ciscando
chão de areia fixa

fora de mim, velava meu corpo
(onde eu estava?)

teu nome não me dizia nada
o seu latido guardava o meu em segredo

o cio a deixava inquieta
suspensa entre quatro dentes

meu corpo - uma massa fixa
sem qualquer resposta

um sonho apenas

você sorria de rabo solto
sentada na relva feito quem

abro os olhos
corpo ausente

continuo rindo - desperto -
rabo solto sem relva

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Necrológio

e justo pelo cu foi pego e
tua virilidade, o medo de perdê-la,
o matou.

e que o cu era sagrado,
e que era um lugar de jejum e solidão.
e que era frescura e que podia matar quem o tocasse.

e agora?

um câncer no cu te assola e quem irá tocar a tua alma?
antes te tocassem o cu
e estava a salvo
e viril
e homem e sempre.

hoje é outro o teu medo,
ontem o cu agora a morte.

e a morte te levará
o cu e o medo
e do que fica nem sequer falta te fará.

te fincassem antes no cu o dedo
e tudo já estava.

ironia,
teus cunhados morressem, frescos,

do que agora te mata.

Gênesis


pende a cabeça de deus
enforcada sobre a beleza

escorre em si rútilas pétalas
adornando a carne como árvores antigas

a beleza canta seu engenho sob o sangue
decantando toda a criação estrangulada

a beleza inaugura o nome
encerrando nas urnas alfabetos proibidos

o nome brota na insígnia assassina
a garganta esfolada de deus

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A língua nômade



se eu falasse a língua dos atravessadores de desertos
se eu falasse toda a areia caída de seus ombros,
se eu falasse ainda a paisagem árida de seus dentes
a paisagem pura dos animais esfaimados
se eu falasse os animais assentados na saliva seca
se eu falasse de dentro da sede dos que morrem sob a lua
se eu falasse os dias habitados na pele da serpente
encerrados nas urnas que guardam as faltas todas
se eu falasse as estrelas pendidas nas pontas dos dedos
se eu falasse o sangue sustentado na costela ausente
se eu falasse a mulher o homem a criança e o centro da adaga
se eu falasse as falésias mudas pendidas na garganta
se eu falasse a voz das flores de sua saia
fazendo ventos em meu desejo
se eu falasse voz corpo o que quer que seja
se eu falasse a delicadeza deitada no mês de julho
se eu falasse as flores cobertas de fogo
se eu falasse os acentos inaugurais de um sorriso
se eu falasse o nome guardado em mim esta noite
se eu falasse
se eu falasse a verdadeira letra que iniciasse o verbo
se eu falasse os números quebrados em teus lábios rotos
se eu falasse o sim o não o nunca o agora
se eu falasse então isso assim lá onde
se eu falasse quando
se eu falasse quente o segredo da sopa
se eu falasse a mágoa acesa nos joelhos
se eu falasse as pedras que choram o chão
se eu falasse durma a grama de seu azul turbante
se eu falasse irilisili
se eu falasse anijiriraã
pisiriliá irujna keresê
khraô sirilitili keresaranaã
se eu falasse

se eu falasse.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Há uma vocação dentro do nome

há uma vocação dentro do nome.
e cada grito são flores saídas dos lábios
quando a noite ainda é aceno.

há uma vocação. e os ventos
nos mexem o alfabeto segredado
no mais fundo acima da terra.

era noite. e os nomes evocavam a vida.
a morte era ainda a criança vindoura
que gritava sua luz rupestre.

as mãos trabalhavam no nome a sua vocação.
mãos femininas designando o desejo,
pairando sobre as cabeças consteladas.

há uma vocação dentro do nome. e todas as letras,
guardadas ao fundo de outras vozes,
evocam cores segredadas no infinito

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A queda



fios brancos em teus cabelos desgrenhados.
papadas e rugas e dentes postiços ascendem de teu rosto,
disfarçando ainda quererem viver.

teu osso roçado no asfalto atravessa minha garganta e
toda a atenção se volta quebrada em sua queda.
segreda-me o desterro embrulhado no sorriso.

culpa por um corpo já comido pelo tempo adiante.

o silêncio jorrado das mãos
converte-se em línguas incalculáveis dentro de teu desespero.

o que calo é teu assombro.

a cada voz adiada, estrangula-se mais o cordão
que em mim te sustenta os dons.
te é revelado uma lenta desordem na esterilidade materna.

entre peito e outro, a recíproca faz uma outra estação.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Cerzir a pedra



trabalho fundo
o ponto secreto da trama
rede para deitar a morte
nos cotovelos, os dois
apontados leste-oeste o sol no peito
corpo aberto para o espanto

saliva na boca

sal que desce o ventre
para curar o sorriso no cálcio
brancas filigranas velando a delicadeza
músculos sem ossos que os carreguem

o adeus na boca orvalhada

a comida azeda posta à mesa no último domingo
o outono colhido nas flores
debaixo das sombras dos ponteiros
que batem demasiado na cabeça
no aceno de quem parte

uma rede sem pedras
tramada no peito
cicatrizes que a fazem linho
para a mortalha de um corpo
adiado no abraço cantante
da noite que se cala