terça-feira, 27 de maio de 2008

História

o corpo de um torturado
escava através dos séculos
sua intensidade de dor e morte

mas Deus, para quem não existe a história
como atura o horror
desse instante
onde só o que muda é a boca
que grita?

(Vera Lucia Oliveira, IN Tempo de Doer/Tempo di Soffrire. Roma: Pellicani Editore, 1998)

Escrever

escrever.

sobre o quê? sobre as coisas que não se vive, sobre a quase-impossibilidade da vida? escrever sobre o espaço que preciso para escrever e não tenho? sobre um corpo que preciso para escrever e que está morto?

escrever sob.

sob um céu cinza que mata o corpo morto; que asfixia meu pulmão. uma escrita morta. escrever só vale se sangrar. mas, e o sangue? secou há tempos. apenas o pó rubro e seco sobre o papel.

sob um labirinto claustrofóbico escrevo. num lugar que é o mundo e não é meu. Paris só o é fora do quarto, alarmaram-me duas mulheres o qual confio e amo. e que estiveram em Paris e dentro do quarto. mais ainda dentro do quarto. o quarto onde desnudavam sua solidão. um grito mudo num quarto ecoante. (uma está morta; a outra morre em estado progressivo.)

e quando não se tem nem quarto nem Paris, se escreve sobre e sob o quê?

escrevo procurando. durante. em estado gritante de desespero. (sem sangue)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Carta aos Frátrios

Meu Deus, por que me abandonastes
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

(Carlos Drummond de Andrade)



d. está enlouquecendo.

diz que a força que possuia para manter sua sanidade está definhando. já faz algum tempo, vem cometendo alguns assassinatos. está cego. e o que é pior ainda: está surdo. justamente ele que era um apreciador da audição; está como que jogando pérolas aos porcos. está num autismo que não tem quem o tire. anda encurvado, de cabeça baixa, procurando um buraco no qual ele entrou há tempos e não sabe. se cobre (e se aquece) de uma solidão claustrofóbica. tomou gosto por ficar no quarto estreit'escuro. fica horas e horas olhando o escuro, até fazer parte dele. sim, ele conseguiu fazer-se invisível. inclusive para ele mesmo. não sente cansaço, não sente fome, não sente sono. mesmo o sono flamejando-lhe o olhar, evidenciando o óbvio. seu olhar é de ameixas secas. deu sua alma ao diabo: disse que não precisava mais dela e seria desnecessário vendê-la, ele que só quer o quarto estreit'escuro. não quer saber de amores e os que teve, fez questão de esquecer. acha que o amor é para quem tem competência e alguma disponibilidade para a vida. o que fez do que viveu? sua resposta foi o silêncio, a negritude que o apagou, o quarto estreit'escuro e um pouco de alienação. antes do quarto, costumava matar neurônios vendo programas religiosos e pornografias baratas. principalmente aquelas que esfregam cenas de sangue e assassinato explícitos na nossa cara. no começo foi difícil, mas depois até achou normal. e foi nessa mesma época que se convenceu de que deveria cometer o seu. acha que está morrendo um pouco por dia e que a qualquer momento chegará a hora fatal. d. está enlouquecendo. só não achei jeito para lhe dizer que ele já está morto.


peço vossa ajuda,


d.