quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Solidão e Outras Modernidades


e se perdendo nos olhares dos outros passageiros, perdia-se de si. era essa sua solidão: acompanhada. emaranhada em outras tantas que não aguentam o espaço íntimo de seus corpos e querem transcender-se no outro. ela olhava à sua volta e imaginava as estórias por detrás desses olhares: neblina. nas outras estórias, queria encontrar a sua própria. que se perdeu e ela não sabe onde. não encontrava.
sons ensurdecedores. burburinhos de falas alheias, motores, máquinas e outras modernidades. ela não ouvia. os ruídos que a acometiam eram os seus. dentro. e a isolava do mundo de fora, assim como todos estavam isolados entre si. acorrentados em seus ruídos internos.
e que ousadia salvaria (se é que se possa chamar de salvação!) a dor dessa solidão que acometia a moça só em meio a massa humana que a cincundava? olhava pela janela e a visão de fora era vertiginosa. pessoas andavam emaranhadas e únicas. não existia nada além de seus caminhos - que não sabiam, de fato, se eram realmente seus (os umbigos eram seus universos.) olhava as pessoas no ônibus: sua visão escurecia. o ruídos internos ficavam insuportáveis. sua cabeça latejava. as pessoas fora dentro ela circulavam em sua mente, gritavam. enlouqueciam.
precisava salvar-se, salvar sua vida. precisava fazer algo e era urgente...
virou-se para o lado, sem olhar a quem, vomitou algo (talvez sua solidão):

-bom dia...

um sorriso alheio salvou-lhe a vida. a viagem seguiu sem mais ruídos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Minha Mãe

para minha Mãe


fios brancos em seus cabelos desgrenhados. um sorriso insano na face. papadas e rugas e dentes postiços acendem sua velhice. um olhar cansado, disfarçando ainda quererem viver.
tentativas de iniciar uma conversa que acabou há anos-luz. um assunto que nunca começa, porque já foi terminado há muito. tentativas de me pôr numa família. eu que não sou familiar. você tenta bestamente. irrita-me com sua bondade-plástica. sei o real motivo: colocar-me num espaço que não é o meu. colocar-me sob seu domínio, debaixo de suas asas. coruja que já assassinei.
você chorou quando eu disse que ia sair de casa, eu que já não estava. eu que não pertencia àquele lugar. a sua casa. o seu mundo. você chorou, querendo que eu não fosse, eu que já havia partido e você sabia. chorou porque sabia. disse que eu não gostava de você, que não gostava de vocês, que vocês eram tudo o que eu tinha. e você sabia que mentia, sabia que eu sabia que você mentia para eu ficar. eu que já havia partido.
e o mundo era meu lugar, minha casa, enquanto eu não achava meu lugar, meu lar. pertenço aonde estou. e você odiava o mundo e falava de Deus e outros mundos inexistentes para mim, na tentativa de me fazer voltar ao seu, ao seu mundo que nunca pertenci, ao seu mundo que reneguei quando te assassinei como coisa hierárquica e te-me transformei em pessoa.
podíamos estarmo-nos presentes apenas no silêncio. mas para você era insuficiente, tinha de dizer nadas para irritar-me, invocando todo meu sarcasmo, meu silêncio irônico-fatalício.
você sabia que eu podia matá-la e você pedia isso, pedia-me para aniquilá-la, só para, depois, me fazer sentir culpa, ficar o resto de minha morte sob seu túmulo, devoto de uma santa de plástico, e você com seu sorriso camuflado em suas lágrimas.
não, eu não vou chorar, sequer sentir culpa. conheço seus truques e estratagemas para me fazer ficar. eu que já parti e sabes disso. e é o ódio que sentimos - eu, do seu amor-plástico e você do mundo-meu-que-me-ganhou - que nos aproxima. nos faz cúmplices de um segredo-nosso. de um amor que não aceitamos e temos. o meu, de assassiná-la e o seu de me querer em seu mundo. e nosso amor é o maior de todos. um amor que nasceu desde sempre. um amor que não entendemos e que nos mata um para o outro. um amor que faz com que nos suicidamos para você-eu. esse amor demente, insano. que nos faz duvidar. que não sabemos.

e simplesmente existe. independente de não existirmos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

E Ele me Leu...

E eu achava que só eu é que era estranho o suficiente para pensar em algo desse tipo...


"O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece."

-Charles Bukowski-

Borges e Eu

-Jorge Luis Borges-
(P.S.: não achei o original.)


Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agra­dam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atribu­tos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamen­te, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Exercício*

*texto feito numa oficina de prosa com o tema "fofoca". Se não fosse a oficina, não sei se o faria. Taí o resultado. Ah, sem título por enquanto. Aí vai:


Olha só aquela racha, tá se achando. Olha lá, vê só como ela ri, precisa desse escândalo todo?! E por falar nisso, olha o decote... não!, dá para ver até o umbigo. E ela se inclina toda pra falar com ele... hum. Vou ficar quieta. Ah não!, me descupa, mas não dá! Você viu? Precisa pegar na perna do bofe pra falar? Olha vou ser sincera: eu nem gosto que me toque! O quê? mas o Augusto era meu namorado, é diferente. Ah é? Namorado dela? Outro, né?!, porque é um por semana. Já faz seis anos?! Ah, não sei, só sei que semana passada vi ela com outro... e olha, é de tudo quanto é idade, viu?! Tava com um bofe... já era um senhor! Foi sim, foi depois do almoço. Ah não?! o pai dela? Tudo bem, mas com esse vestidinho, não sei, não, boa coisa não é. Conheço esse tipo. Olha lá, falei, viu ela descruzando as pernas?! Deu pra ver até o útero. Aposto que tá sem calcinha. É... deixa pra lá, a vida é dela, não tenho nada a ver com isso. Eu não queria falar nada não, mas ele só deve estar com ela pra ir pra cama. Como não?, você acha, vulgarzinha desse jeito?! E esse cabelo... tá parecendo uma puta. Ah, mas não é verdade? Tereza... Tereza... olha lá, ela tá vindo. Péssimo gosto, que cabelo. Tereza, fica quieta.

-Oi Fofa, tudo bem?, você conhece a Tereza, minha amiga? Ah, o namorado! Não, noivos?! Olha que graça Tereza, que bonitinhos. Então passa lá no salão que eu tenho umas coisas pra te mostrar. Que isso, eu é que sinto um enorme prazer em poder mexer nesse cabelo maravilhoso! Tá bom, tchau, hein... bye, bye, linda...

Hum, noivos. Vaca... ai que ódio, ainda por cima ela me chamou de Jorge, eu já falei pra ela que é Salete, SA-LE-TE... Ah, vambora, Tereza, qu'eu já tô passada.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Canto Fúnebre

O canto da parede do quarto, numa fresta entre o guarda roupa e a parede era o seu lugar. Seu até que alguém colocasse algo ali. Na verdade, era um desabitado.

Em algum momento em sua vida fez parte de um círculo social onde era chamado de amigo. Ele não se lembra bem, e hoje não sabe e nem imagina o significado dessa palavra. Nem pensa nisso. Simplesmente não pensa. Seus olhos ficam vidrados, ávidos, num ponto vazio no espaço, que facilmente acredita-se que ele avista o chão.

Chão. Foi ele.

Sua boca adormecida era uma casa abandonada onde reinara o silêncio. Saia delas apenas heras decrescentes de líquido transparente e viscoso.

Amigos. Se ele tivesse consciência do que era essa palavra – hoje inexistente a si – chamá-la-ia de ausência. Sua única companheira.

O que é homem, quando sua única posse é o corpo? Antes, quando tinha algo além, era cercado de outros corpos que o simpatizavam. Ele até chegou a acreditar na palavra amizade. Não, mais que isso: era uma família que ele possuía. Fora e dentro de sua casa.

Mas agora, mudo, que palavra lhe salvaria? Ausência. Alguém em plena sanidade não arriscaria chama-la de palavra. Guarda-se ela muda dentro de si. Ausên... Ele, que já não pensava, teve a ousadia e coragem de conviver com essa in-palavra. Pois com ela não se escolhe o convívio. Acontece.

Quantos corpos passaram por sua vida. Quantas vidas compartilhadas. Solidões acompanhadas. Agora sem companhia nenhuma. Sua solidão à mercê da ausência. Na derrelição, no abandono. Num canto que não lhe pertencia. Seu último abraço foi dado a um chão. Como um beijo na boca. Um encontro precipitado há anos, desde o primeiro beijo naquela ardência de líquido transparente. Este não era viscoso.

O beijo da morte. O chão. Foi ele.

Tirou-lhe todos os corpos de sua vida. O que é o homem, quando sua única posse é o corpo? E o que é o homem, quando nem seu corpo lhe pertence?

Uma fresta. Um espaço vazio entre o guarda roupa e a parede.